20 de setembro de 2013

Dilema


Como criar uma obra de arte depois de Deus? O que há para ser feito depois da água, do sol, das articulações da mão, da pérola, da orquídea? 

Meu cabelo pegou fogo uma manhã e nele se via um arco-íris em cada fio. Pensei “meu Deus, eu não aguento tanta arte!” 

Pareceu que a obra inteira, o mundo inteiro estava acabado e eu sobrei no meio a exemplo de imperfeição. 

Não. Mas no meio não que é muita coisa. Sobrei no canto de um mundaréu, na margem do Caminho de Leite. Ou menos. Fiquei pra bicho na ponta do cabelo ensolarado, guardando fios de arco-íris.

3 de setembro de 2013

Se velório, não agite


É uma situação peculiar. Pessoas morrem todos os dias, mas não da sua família. Então, a ocasião é mesmo um caso a ser desvendado. E em grupo. Parentes chegam de todos os lugares. Muitos, inclusive, descobrem seu parentesco ali mesmo e aproveitam para rascunhar a árvore genealógica atrás do ticket do estacionamento: 

__ Olha, Evandro, esse aqui é o Nivaldo, esposo da Armênia, filha do Gerônimo e da Claudete, lembra da Claudete?, tia da Anastácia e da Carmela, a que teve o Reginaldo depois que se separou do Moacir e se casou com... 
__ ...Tá. Começa de novo que agora eu vou anotando aqui. Nivaldo... esposo-Armênia-filha-Gerônimo-Claudete-que... Ah! Não foi a Claudete do Cícero?, que traiu o tio quando... nossa!, eu me lembro... foi um escândalo... 

Lembranças. O importante é ter recordações, mesmo que só de fatos que não se conectem com rostos. 

__ Sinto muito... 
__ Oi... eu também sinto muito... 
__ ... 
__ Quem é esse mesmo que a gente cumprimentou agora? 
__ O filho do morto. 
__ Ahn... 

Mas meus personagens favoritos são os francos, os que riem deslavadamente, aproveitam a oportunidade para um encontro informal e uma roda de conversa descontraída ao lado do caixão. Comentam a novela, contam aquela do papagaio, falam do cachorro que, espertíssimo, corre pra cozinha ao apito do microondas, a vida conjugal da vizinha, algum problema de saúde que eventualmente lembre o estado do recém-falecido e outras especulações felizes sobre a grande graça de estar ali. 

Grávidas, então, viram o centro das atenções. Celebrações efusivas à nova vida contagiam o ambiente e merecem as flores das coroas e as velas pelo anjinho que virá. Alguém, mais emotivo, quebra o clima de confraternização com um choro copioso, inconveniente. 

__ Nossa, gente. Quem é esse, fazendo esse escândalo todo? 
__ O filho do morto. Já falei! 
__ Ah, é! Tinha esquecido! 

Os mais revoltosos procuram culpados. A viúva é sempre a primeira suspeita e não demora para começar a coçar a orelha esquerda. Seja como for, o mistério precisa ser esclarecido, na esperança de que o quadro seja revertido e o defunto se levante. Um pequeno e seleto grupo, mais consciencioso, se dedica a examinar os papéis, usando a tampa do caixão para separar os documentos e avaliar com acuidade: 

__ Deixa eu te mostrar o atestado de óbito. Olha aqui. “Causa mortis: infecção generalizada”. 
__ Mas foi feita autópsia? 
__ Sim, sim. Ele morreu no hospital, mas fizeram. Até demoraram para avisar. Olha. Duas da manhã. Mas só ligaram às 9h. Deve ser por isso. 
__ Mas a infecção por causa da perna, ainda? 
__ Deve ter sido quando ele tirou a prótese. 
__ E se não foi? 
__ Deve ter sido. 
__ Foi depois da queda. 
__ É. Foi depois da queda. 
__ Então foi a queda! Essa queda aí tá mal explicada... E se ele foi empurrado? 
__ É... é fácil empurrar uma pessoa de noventa anos... 
__ E a viúva é mais nova, não é? 
__ Sim! 89 só! 
__ Tá vendo? Tem mais vigor. Será que não foi ela? 

Mas pra quebrar o gelo da névoa fúnebre, nada como as crianças... 
Crianças transformam qualquer velório em festa. Correm, gritam, mostram o que aprenderam na escolinha, falam sobre suas expectativas para o Natal e, no caso de tédio, entram por uma porta e saem por outra freneticamente, animando toda a galera num pique-esconde heterogêneo, que conta inclusive com a participação de atores dos eventos paralelos. 

__ Ahn? Quem tá aqui? Meu irmão que morreu e... O quê? A criança? Ah... Acho que ela correu ali pra fora, na direção da avenida e... 

Um velório é sempre um reencontro marcante. Não precisa de nenhum extra, DJ ou lembrancinhas. Ele clean já é demasiado.