21 de novembro de 2014

Nova modalidade


Atendi. Uma voz meio mastigada de homem jovem, como se estivesse com a cara presa debaixo de uma roda de caminhão, disse: 

__ Você asdfa dinadsfdf pra adsfas fasdfd pais? 
__ Perdão, não entendi. 
__ Você aceitaria dinheiro para gravar um vídeo dos seus pais? 
__ Dos meus pais? 
__ Dos seus pés! 
__ Dos meus pés? 
__ Isso! 
__ Pra quê? 
__ Você sabe quem está falando? 
__ Não! Quem está falando? 
__ Uma pessoa que você conhece. 

Desliguei. Sabe, nem foi o fato de me oferecer dinheiro para eu gravar um vídeo. Se fosse dos meus pais ou dos meus pés, tanto faz. Eu precisaria antes analisar a proposta financeira e os direitos autorais. Qual a função do vídeo? Também nem foi o fato de a ligação ser a cobrar, o que me parece particularmente suspeito. Como a pessoa vai me pagar pelo vídeo se não tem dinheiro sequer para me ligar? 

E outra coisa: o telefone toca dez pras duas da manhã, sabe? A gente já atende com o coração na mão, achando que é alguma emergência na família, que o carro de alguém quebrou na estrada deserta e a pessoa pegou o telefone do posto pra ligar e está com fome e frio e perdida, etc etc. O vídeo dos meus pais ou dos meus pés pode certamente esperar o horário comercial. 

Mas o que me deixou realmente magoada foi o fato de dizer que é alguém que eu conheço. Cara, se eu te conheço, seja mais tarado e menos psicopata. Manda um e-mail, uma mensagem no face, um sms ou liga durante o dia, tá certo? Pode comprar um vídeo dos meus pais, dos meus pés, das minhas mãos, sei lá. Faz a proposta que eu vou analisar. Mas não me assusta. O tema é a sua tara, fale sobre a sua tara. Não se fantasie de tarado ofegante às duas da manhã que eu não sou obrigada a travar esse tipo de conversação da maneira mais ameaçadora possível.

9 de novembro de 2014

Vulgar


Foi do que eu me lembrei depois das represálias. Aquela menina magra escolhendo uma roupa de dança do ventre também. 

Não nos conhecíamos. A mãe dela sugeriu o vermelho. Ela respondeu: “argh, não, é vulgar!”. Eu olhei para a roupa vermelha que havia escolhido e fui em direção ao caixa. 

Vulgar… 

Ela vai dançar na frente de centenas de pessoas com uma espécie de biquíni enfeitado com lantejoulas de carnaval e acha que a cor é que vai definir se a exposição é ou não “vulgar”. 

E o bolso em que uso meu celular? 

__ Tira o celular do seu bolso. Está vulgar, Camila. 

O que é vulgar? Um telefone dentro de um bolso ou o olhar que imagina um falo ereto se apertando deselegantemente contra a pélvis de uma mulher que leva seu telefone no bolso? 

Ah... a “vulgaridade”, essa dose diária de moralidade e as mulheres que não compreenderam a falta que faz a solidariedade feminina.

5 de novembro de 2014

Amantes tristes


Uma das vantagens de se lidar com alguém ao longo dos anos. Essa linguagem compartilhada, o gueto, a comuna. Eu entendo o que ele diz quando poderia ter escolhido quaisquer outras palavras. “Pessoas”, “infelizes”, “quem procura o amor”, “frustrados”, “sofridos”. Mas saiu assim, poético, condescendente: “...são amantes tristes”. 

Recorríamos a Freud, Lacan, terapeutas, amigos, nossos pais e ex-casos para exemplificar os vícios da vida, da cafeína à cocaína, dos rituais matinais aos cacos emocionais que não abandonamos. E eu falava da solidão. Prática, para mim a saída é aceitar a solidão. Toda ela. A de se sentar no divã, a de regar as plantas pela manhã, a de conviver com o band-aid no calcanhar, a solidão de viver, de morrer, de babar no travesseiro enquanto dorme. Ele me chamou de insensível, porque não podemos superar tudo sozinhos. Não tudo. E não sozinhos. 

Mas é isso! É isso mesmo. Não sozinhos. Talvez precisássemos do cafuné, do abraço, de alguém pra fazer o chá e trazer o miojo. Mas a sua dor é só sua. A minha dor é só minha. A graça que transtorna o meu rosto talvez não faça o mesmo por você. E se fizer, vai ser diferente na sua bochecha. A pequena pinta no seu ombro que faz de você, você. 

Gentilmente, ele me lembra que toda a demanda é uma demanda de amor. Até quando se dá as costas, quando se grita, quando se compra o que não se precisa, quando se ama e quando não ama. Até quando buscamos o amor lá onde ele não se manifesta. Aqueles que parecem odiar, que abusam, que exploram, os que choram. “...São amantes tristes”.