25 de agosto de 2011

Meu segredo até de mim


O tempo recupera e eu soube a graça. O que é pra ser é, mas vaticínio coletivo não sabia que pegava.

Muitos foram os avisos da aura que nos envolvia e amparava. Nós ignorávamos solenemente, orgulhosos da intransigência.

...Até que o chão nos teve em desistência. A gravidade nos uniu como força escorregadia... Parecia ilusão quando me descobria os truques que eu não tinha.

Tal qual botão que sela um feito sigiloso. As miudezas sussurravam no breu da casa vazia: “o que terá sido deles?”

17 de agosto de 2011

Lar

...Que a vida é encantada e, ademais, eu também fazia cabaninhas quando criança. E era generosa! Fazia para minha irmã e eu morarmos juntas! Alegria nossa era viver à parte (no meio da sala), pra sempre (por meia horinha, até que cansávamos), numa casa só nossa, só com as nossas coisas (tudo furtado dos cômodos oficiais). E ficávamos lá, fazendo nada até nos dar de tédio à claustrofobia e resolvermos “dar uma volta” e ser gente da família de novo.

Alguma vez era de armação precária a casinha. Eu, a mais velha, sustentava o edredom no ar com as próprias pernas. Outra vez, cismava de construir direito e rijo, com duas cadeiras, uma de cada lado, teto e paredes de cobertor amarrado e nós no meinho.

Dada minha vasta experiência, não pude deixar de notar a delicadeza e regularidade com que outra cabaninha era feita.

Uma caixa de papelão formava um triângulo com o muro e o chão. Um cobertor por cima conferia resistência e calor à morada, com um rasgo fino e preciso na lateral, para ventilar sem comprometer a privacidade. Uma vassoura gasta teimava em escapar e se deixar ver, que não entrava inteira no espaço. E eu sabia, por isso, que o morador o varria.

Eu passava naquela esquina e olhava pra cabana. A cabana se deixava olhar. A vida era, então, desencantada.

15 de agosto de 2011

Três da manhã

A madrugada deveria ser sagrada. Seu pico, a hora mágica de todos os anjos. No silêncio fácil eu descubro porque mesmo foi que me ocorreram as idéias e lembranças mais estúpidas e dramáticas, como casamento, tagarelices e as péssimas propagandas do guaraná Dolly.

Na imperturbabilidade de uma cidade no escuro eu consigo escutar o celular da vizinha vibrando sobre uma superfície dura. Imagino, então, com pudor súbito, o que ela deve escutar de mim.

Declarações, nascidas íntimas e sorrateiras, viram cânticos dionisíacos para a não-platéia do condomínio, forçada a ouvir o desabafo alterado e rouco na voz feminina: “Amooor. Eu quero amooor...” – de continuação indistinguível.

“Eu também quero” – pensei sem interferir na noite. Consigo pensar em um montão de gente que quer. Mas são muitas pessoas querendo amor... e poucas dispostas a se dar ao trabalho, correr o grande risco... de amar.


3h11m

12 de agosto de 2011

Ganhei uma flor branca...

No café da manhã.

Escolhi aleatoriamente uma mesinha no lugar de sempre e pedi um mineiro quente no pão francês e um toddy gelado.

Eu adoro toddy.

Mas daí veio junto uma flor branca das mãos de um mensageiro tímido:

_ É do Júnior. Ele mesmo que fez. Pra você!

O caule de canudo sustentava as pétalas de guardanapo branco, entrelaçadas cuidadosamente.

Senti minhas bochechas aquecerem e voltei pro trabalho, feliz da vida, com a flor que enfeita o porta-canetas.

Além do toddy, adoro flores brancas de guardanapo e canudo no café da manhã, descobri naquele dia.

A vida pode ser linda.



10 de agosto de 2011

Bruto

Eu não sei como tanta sujeira cabe numa pessoa. Parece que o preto se vai acumulando como que a formar um duplo do indivíduo, um outro dele mesmo que o encobre, como pêlos ou penas, talvez a lhe aquecer.

Desgrudar aquilo tudo exigiria um arranque doloroso, uma festa de despedida. Um braço forte, força párea que lhe urdisse novamente o ventre e a tez, fundida em negrume, já quase extinta. Nem feição mais, tal ponto. Debaixo de um banho se revelaria, descoberta, quiçá, que depois de um tempo até a gente se esquece da gente. Se não nos chamam pelo nome, decerto o esquecemos. Se não usamos da dignidade, não a temos.

Eu imaginava ali correntes e escutava grilhões nas passadas. Mas eram só dois pés sujos metidos em tênis velhos, silenciosos. No topo do ser sem nome, cabelo vasto e o fumo lhe fazendo contorno.

Dó, não... Era outro espécime em mim nascendo, outra manifestação quase tão ruim. A solidariedade que se tem por bicho. Um reconhecimento entre animais.


8 de agosto de 2011

Aviador

Houve um tempo em que eu queria genuinamente fazer algo relevante pela humanidade. Mas quando me deparo com essa doçura violenta que é a vida, o amor... resta-me pouco, resta-me nada a dizer.

Saint-Exupéry, autor do Pequeno Príncipe, enamorou-se certa vez, aos 43 anos, por uma menina de 23, casada, francesa.

Com tudo o que aquele amor tinha de inapropriado, lançou-se ele, com aquarelas e poesias, a conquistá-la. Em dado momento, ao ver fracassar aquele romance, escreveu à ela:

“Descubro com melancolia que meu egoísmo não é tão grande assim, pois dei ao outro o poder de me magoar. Menininha, foi com carinho que lhe dei esse poder. É com melancolia que a vejo usá-lo.” (1943)

E eu daqui, de 2011, não consigo pensar em outra forma possível de usar tamanha doçura para dizer que algo está doendo dentro.

Não me resta mais nada a dizer.


5 de agosto de 2011

"...o que ainda não vivi"

2 de agosto de 2011

Zelador dos ventos

Eu não via problema algum. Por mim, teríamos folhas nas calçadas inteiras. Pisaríamos num chão crocante, sobre estralitos fofos no outono. As mulheres afundariam seus saltos, experimentariam o desequilíbrio e, quem sabe assim, desinventassem os degraus ambulantes. Até lá, homens e crianças levariam vantagem ao passar por onde ainda houvesse árvore.

De qualquer forma, devem tê-lo mandado. Varria a entrada do prédio com esmero e vassoura, juntando as folhas em montinhos disciplinados. Só que, como a vida tem desses ventos, acontecia de tudo voar antes que fosse possível realizar de todo o feito. E ele recomeçava, contrariado, a peripécia de viver.