19 de fevereiro de 2015

Passos


O som dos passos das sandálias da minha avó no bege dos blocos da rua até o portão verde. 
Eu sabia que estávamos chegando naquele lugar pelo som dos passos dela. Era um som seco de pedrinhas no ladrilho que não se demoravam no choque. Um atrito bem breve alimentando a ansiedade do próximo passo pra chegar, depois de muito tempo no ônibus e o enjôo do cheiro de combustível queimado. 

Anos de tardes depois, reparei no som dos passos que primeiro eram distintamente audíveis, contáveis, mas logo se confundiram em um difuso burburinho. As vozes de cima, das cabeças, abafaram o barulho dos pés usando o asfalto. Eram vozes que gritavam palavras de ordem contra o capitalismo, contra a pobreza, contra a opressão, contra a política imperialista, contra a guerra, contra o analfabetismo, contra o racismo, contra o uso de agrotóxicos, contra os transgênicos, contra a TV Globo, contra. 

Quando a tempestade das 17h começou, muitas pessoas correram para debaixo de toldos ou reentrâncias de cimento, buscando preservar minimamente seus investimentos de energia, saúde e material. 

Com a câmera encharcada nas mãos, encolhi em um canto de loja, no segundo degrau, às portas de uma moradia humilde, cuja dona tentava precariamente proteger a si mesma e seus pertences dos passos que avançavam para cima do seu corpo, do seu leito, das suas roupas, do seu cobertor seco, do papelão que virava tapete de estranhos no progresso da multidão. 
Contemplada em cada frase de ordem na hora da passeata, na hora da chuva não existia mais.

11 de fevereiro de 2015

Drops - A Presença

Depois de uma semana com celular é fácil se lembrar das razões para não ter um celular.
Entre elas, o número que é novo pra mim é velho para outra pessoa.
Depois de atender umas dez ligações explicando que não, eu não sou a mulher, nem a amante, nem nada que valha do Santino, excluir SMSs diversos pro Santino e bloquear sete contatos no WhatsApp me chamando com um amistoso "e aí, véio", resolvi tomar outra atitude.
__ Boa tarde santino como vc esta veio
__ Esse telefone não pertence mais ao Santino. O número foi adquirido por outra pessoa. Por favor, confirme o novo contato da pessoa com quem deseja falar.
__ Santino da rc gesso
__ Como? O Santino que você conhece trabalha com gesso?
__ Como vc conseguiu este numero do santino
Isto mesmo ele tem uma firma de gesso
__ Legal. Eu consegui esse número da seguinte maneira: fui a uma loja de telefonia, comprei um aparelho e a operadora sorteou um número. Foi assim. Há uma semana não param de me ligar perguntando do Santino. Ele deve ser uma pessoa muito querida e aplicar um gesso como ninguém, suponho.
__ Tbm descupa eu ter ti encomadado vou ver se consigo com o filho dele o novo numero dele tvm
Pra mim nao tenho o que falar dele ate logo e descupa tbm
__ Se conseguir o número, me avisa! Daí eu passo pras pessoas que me ligam todos os dias perguntando dele.
__ Tbm obrigado fica com deus
__ Eu que agradeço. Deus nos abençoe.
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Pegar nenê na escola e metrô no final da tarde.
Cheio, claro.
Depois de dois minutos no carrinho, ela foi se soltando perigosamente e pedindo colo.
Peguei.
Um senhor muito gentil me ofereceu seu lugar entre os preferenciais. A moça ao lado não permitiu que ele se levantasse e cedeu para mim seu próprio lugar, a fim de não desalojar o senhor.
Agradeci e me sentei.
A miss no meu colo, como de costume, foi fazendo a social pela meia hora que passamos ali.
Mandava beijos e acenava, olhava de ladinho, pegava uma coisa da mão de uma pessoa e entregava de volta pra pessoa errada e seguíamos em clima de descontração enquanto o senhor rezava discretamente seu terço durante a viagem.
Na hora de ir embora, voltei minha atenção a ele para agradecer mais uma vez e desejar-lhe boa noite.
__ Não, não. Eu é que agradeço. Sabe porquê? Não é todo o dia que temos a chance de assistir a performance de um anjo em pessoa.
A pequena miss parece que o entendeu e lançou um último beijinho sorridente do meu colo direto para o coração do senhorzinho.

10 de fevereiro de 2015

Avaliação


As alas, neste caso, são divididas em "baterias", o nome que se dá para cada setor, digamos assim. Ela pegou a infantil e chegou a hora da avaliação prática durante o atendimento no hospital da universidade. A professora chegou com a prancheta e foi anotando enquanto a aluna desenvolvia os exercícios com a pequena paciente. Durante aproximadamente uma hora, a aluna procurou se lembrar acuradamente de cada ponto da lesão, causa, diagnóstico, prognóstico, tratamento, resultado esperado, obtido, teorias. E foi explicando para a professora tudo o que fazia com clareza, pedagogicamente, profissionalmente. 
A menina percebeu a tensão do momento, mas segurou sua emoção todo o tempo. 
Ao final do atendimento, não agüentou: 

__ Professora, como é, eu fui bem?

9 de fevereiro de 2015

Mãe solo


8 de fevereiro de 2015

Nossas Beatrizes


Eu me demorei alguns segundos observando, tentando compreender. Ela se aproximou um pouco desenfreada. Parou subitamente à porta, do lado de fora, abaixou a cabeça e sussurrou o que pareceu ser uma oração emergencial, sufocada. Arrependeu-se, esterçou e dirigiu para o mesmo lugar de onde estava vindo. Parou de repente, aos berros: “Beatriz, pelo amor de Deus, Beatriz, me ajuda, Beatriz, não faz isso comigo!!!! Eu tô cansada, Beatriz, todo o dia é isso!!!! Pára! Pára! Pára! Você me deixa doida, doida, doida!!! Beatriz!!!!” – disse enquanto tentava parar o avanço da criança que ia pelo vão do cinto de segurança do carrinho, fazendo a pequena cabeça de cabelinhos louros pendurar pelo pescoço, nem bem saída do carrinho, nem bem de volta ao assento. 

Em um golpe de esgarçado esforço físico, alojou a criança e saiu dirigindo o carrinho rua abaixo. 

Eu à porta, do lado de dentro, considerei primeiro rezar com ela, já que estávamos ambas na farmácia com nossas crianças no sábado à tarde e não deveria ser porque gostamos muito de levar as nossas crianças para passear na farmácia no sábado à tarde. 

Depois considerei ir ajudá-la a desenroscar o pescoço da Beatriz do cinto de segurança do carrinho, antes que a mãe afogasse a si mesma e a Beatriz em seu próprio desespero e cansaço. 

Em seguida, considerei que precisava comprar um chocolate. 
Por coincidência, estava lá o desespero encarnado e a Beatriz, na minha frente na fila: “Não, Beatriz, isso não é seu, é do mercado. Quer dizer, era, antes de você abrir, que agora eu vou ter que pagar, Beatriz. Agora come. Não devolve.” 

Daí considerei que precisávamos muito, nós quatro, descansar. 
Olhei pra minha Beatriz para constatar que, muito perspicaz, ela já dormia em seu carrinho.

4 de fevereiro de 2015

Segundo dia


Linda, rosto simétrico, pele lisa, sobrancelha desenhada. Usava um vestido longo verde e um hidjab da mesma cor e do mesmo tom. Comportava-se com graciosidade.

Enquanto eu comia meu bolo da sobremesa ela contava a história de uma marroquina encarcerada. Casada e grávida de dois meses, o marido (ela ainda se refere a ele como marido) a convidou para ir ao Brasil, onde tinha negócios. Ao desembarcarem, foram presos na alfândega. Havia drogas na bagagem. Dela. Só dela.

Ela disse à Polícia Federal que desconhecia a droga, mas o marido alegou categoricamente que era dela.

Ele foi deportado. Ela foi presa aqui.

O bebê nasceu na prisão e ficou com ela todo o tempo. Por meio de advogados especializados nas leis islâmicas e brasileiras, conseguiu alegar inocência e ser libertada.

Acossada pela tradição, não quer voltar ao país de origem. Foi enganada, mas também foi deixada pelo marido e presa por porte de drogas. É uma vergonha. Alguém que passa por isso mancha o nome da família e não deve regressar.

A religião a acolheu. Primeiro na mesquita, onde foi convocado um chá com a elite e a história foi exposta. Criaram uma rede de apoio. Ela recebe abrigo e salário na casa de uma muçulmana que a ajuda a falar português. Tem aulas do idioma e escola pro filho, que está com quase três anos. Nunca mais entrou em contato com ninguém da família nem com o marido.

Marido.

"O Brasil usa e explora a infância. Crianças são usadas para o tráfico. Nos países árabes é a mulher quem está nesse papel. Muitas são enganadas pelo marido que volta impune, pronto a se casar novamente."

Mas, em ambas as culturas, quem explora, quem engana, quem usa?


1 de fevereiro de 2015

Terezinha de palestra


Nome auspicioso. Quando dizem “ah... não sei que... tá com a Terezinha ou precisa ver com a Terezinha” você já espera alguma coisa. Em um dos prédios onde morei quando era pequena tinha uma dona Belinha que... bom... Ficava lá na janela o dia inteiro, com óculos enormes que viam tudo. Era a relações públicas do pedaço. Lembro dela falando pra minha mãe que tinha uma vizinha que a incomodava todas as noites, porque lavava louça até tarde e fazia barulho. Ela dizia estar averiguando a identidade ainda, mas já tinha pistas. 
Minha mãe engoliu seco. 
Eu gostava quando tocavam a campainha dela, porque tinha o som de passarinhos. Mas isso quase nunca acontecia, de alguém estar à porta desejando vê-la. 

Não sei se é o caso da Terezinha. E também não sei se na vida pessoal alcovita, mas na profissional faz isso profissionalmente. Fala o tempo todo não para que a escutem, mas se escutarem também não lhe faz caso, com a arcada de cima avantajada em um sorriso meio horripilante e amarelado do café. O cabelo mais manchado que grisalho em tamanho médio, com uma tiarinha pra não cair mexas ressecadas nos olhos e impedir a melhor visão de tudo. A fisionomia lhe faz juízo: os olhos saltando das órbitas parecem querer engolir o que se põe à frente. A natureza de suas intervenções é muito diversa, mas sempre negativa. Comenta o alheio e aí cabe de tudo: vestimentas, penteados, presenças, ausências, adivinha a ideologia política subjacente nos discursos a partir do “boa tarde, pessoal, gostaria de agradecer o convite…” 

É capaz de falar ininterruptamente por horas, emendando um assunto no outro fluidamente sem que o interlocutor necessariamente participe de maneira ativa do bate-papo, que segue animado até que possa ser interrompido por alguma fatalidade. Nem um “ã-hãm” é necessário. Se alguém, por acaso, cruzar com ela o olhar e deixar pista de que lhe viu, esta será, inescapavelmente, a próxima testemunha de sua vida.