29 de julho de 2014

O truque


Marciano era o tipo de cara que era aquilo lá, o que se via mesmo. E o que se via é que ele não via nada. Entrava no consultório com seus óculos fundos tateando as paredes para encontrar uma cadeira perto da porta. A secretária torcia intimamente para vê-lo se sentar no colo de alguma senhora bem apanhada, testando a capacidade da esposa de se manter em letargia. Esta sim enxergava. Mas era como se nada. E como se nada era muita coisa, porque era ela quem posicionava a mão do marido em cima da folha do convênio para a assinatura do beneficiário, mais uma ordem ou outra sussurrada sem fôlego ao neto que tentava alcançar o lustre, subindo com tênis melequento no estofado impecável da sala de espera. 

Foi da primeira ou segunda vez que a mocinha já aprendeu a jamais fazer perguntas ao Marciano. Era seu segundo nome. O primeiro não importa, assim como qualquer resposta dele para qualquer pergunta. Era o prelúdio da eternidade em angústia, um labirinto no passado umbralino. Terrível e aleatório, repetitivo, gaguejante, uma resposta pro universo, para os entes falecidos, uma prece rancorosa. Nem uma palavra que elucidasse a ingênua manifestação de dúvida. Ruim com ela, pior com ela e a melodia queixosa. 

Um dia, sem saber como não tomou ciência antes, reparou na chave do carro. O menino parecia bem disposto, mas perninhas de 5 anos não chegariam aos pedais. Com um frêmito temeroso, uma curiosidade galopante e a certeza do truque, perguntou em voz alta quem dirigia. A senhora respondeu: 

__ O Marciano. 
__ Mas como? Ele enxerga? 
__ Não. 
__ Então... 
__ Eu vou dizendo pra ele. 
__ ...Dizendo o quê? 
__ Quando é pra parar, pra virar, quando tem gente na frente, quando o farol fechou...

28 de julho de 2014

Calabouço de fora


De todo o trabalho que rotineiramente desempenhava, o trecho que mais gostava era aquele do cemitério. 

O ônibus contornava o quarteirão de covas e anjos que se estendiam teimosamente por cima do muro alto, espreitando as horas dos vivos. 

Ele respirava mais fundo ao olhar a copa pontiaguda dos pinheiros verdes contrastando com o céu azul, aliviado de poder esperar morrer um dia.