31 de dezembro de 2012

Um marido, entre outras coisas


Na mesa do restaurante, duas amigas brindam com suco de laranja: 

__ Feliz ano novo, vida nova, carro novo, marido novo, tudo novo!, carro zero, marido novo... vida nova! 

*repetições facúndias constam do discurso original

26 de dezembro de 2012

Da série - Rascunhos

[O APANHADOR DE CONCHAS]





















É assim que todo o mal tem origem: na displicência e falta de discernimento entre o que pode ser bom, belo e o que não presta.

24 de dezembro de 2012

Noel


Talvez teria até sido melhor pegar uma criança emprestada por ali mesmo, pra disfarçar, mas não se deu ao trabalho. Entrou na fila e esperou sua vez chegar. E chegou: 

__ Oi, Papai Noel. 
__ Oi! Você quer tirar uma foto? 
__ Não. Quero conversar igual todo mundo. 
__ Mas tem crianças na fila, meu bem. Você poderia, por favor, aguardar aqui ao lado que na hora do meu intervalo eu... 
__ Não, não posso. É importante. Tem que ser agora. 
__ Bom... então pode falar. 
__ É que eu não gostei da sua localização. Acho que está muito escondido aqui no fim do corredor. 
 __ Ah, é que este é um bairro judeu e não existe este personagem na cultura deles. Então me escondem aqui. 
__ E você acha isso justo? 
__ Olha, eu... 
__ Eu acho que é discriminação! 
__ Sim, mas... 
__ A mensagem de um Deus de amor é essencialmente a mesma. Não deveríamos brigar por isso. 
__ É que... 
__ As guerras religiosas só ocorrem por desobediência ao mais importante mandamento: aquele lá que fala sobre o próximo! 
__ Entendo... 
__ E acho que a sua sujeição a esta regra excludente não nos ajuda enquanto humanidade. 

Ele ajeitou o cinto na circunferência fofa, alisou a barba pacientemente e sorriu, deixando as faces rosadas ligeiramente destacadas na carinha simpática: 

 __ Bem... Eu compreendo. Também acho este mundo mau. Quando ofereço doces às vezes as crianças não pegam porque os pais não as deixam aceitar ofertas de estranhos. São tempos difíceis. Eu sou Papai Noel há 13 anos, mas só do dia 1º ao dia 24. Depois sou uma pessoa normal... 
__ Foi o que eu pensei!

21 de dezembro de 2012

Registros – do que nos toca


“Esses dias me aconteceu uma coisa que até pensei em mandar pra você. É digna do seu blog. 

Eu tava lá na Praça 14 Bis com um amigo meu e veio um cara, devia ser morador de rua, se oferecendo para engraxar meu sapato. Daí eu expliquei: 

__ Mas querido, eu tô de tênis. Não dá. 

E ele disse: 

__ Não, dá sim! Vem cá! Coloca o pé aqui. – e abriu a caixinha, colocou meu pé em cima e sei lá o que é que ele ia fazer. Acho que ia escovar, limpar, inventar uma moda lá, sei lá. Mas eu tirei o pé e falei ‘não... vem cá... vamos conversar...’. Abri a carteira e disse ‘olha, me desculpa, eu só tenho três reais, pode ser?’. O sujeito aceitou e começou a falar e talz. 

Eu, para cortar um pouco o assunto, disse ‘então tá bom, queridão’ e dei um abraço no cara para me despedir e encerrar a conversa. Ele se deu por satisfeito e respondeu: 

__ Tá bom. Obrigado pelo abraço. – acenou e foi embora. 

Ele não agradeceu pelo dinheiro. Ele agradeceu pelo abraço.”

16 de dezembro de 2012

Evite a ruína















14 de dezembro de 2012

Compras


_ Mãe, o que você acha desse vestido? 
_ É legal! Vai lá experimentar. 

... 

_ Mãe! Vem ver! Quê cê achou? 
_ Não gostei. 
_ Não gostou? 
_ Não. 
_ Por quê? 
_ Tá parecendo uma fralda embrulhada. 
_ Uma fralda embrulhada? 
_ É! Uma fralda embrulhada! Sabe quando o nenê vai andando e a fralda tá meio larga, fica meio troncha? Então! 
_ Ah... 
_ Por quê? Você achou bonito? 
_ Bom, eu tinha achado, né? Até você dizer isso. 


 A franqueza é uma benção contundente.

11 de dezembro de 2012

Rasteirinha


A campainha tocou e ele foi atender. Era ela, um pouco mais cedo do que o combinado, antes do anoitecer. Parecia bem humorada, disposta, com as faces rosadas do dia de sol lá fora. Sentou-se no sofá muito à vontade e largou a mochila num canto. Ele notou a bagagem com um certo incômodo, mas procurou se concentrar no que ela dizia. Só para perceber em seguida que não tinha a menor importância. Ela já estava no sofá. Poderia ser ali mesmo. Olhando-a falar em seus trejeitos e inclinações de tronco, imaginava por onde começar. O decote parecia uma feliz opção, acessível às mãos ou à boca ou às três ao mesmo tempo. Talvez o cabelo. O cabelo era um jeito mais sutil de iniciar. Passaria a imagem de ser, quem sabe, educado, tímido. As mulheres gostam disso. As mulheres gostam mesmo disso? Bem, poderia ser a cintura. Se estivessem de pé e ele a segurasse no ângulo certo, ela tombaria para o sofá de volta e ele cairia naturalmente em cima dela. Poderia ainda ser algo mais pueril. Beijar-lhe as bochechas quentes e deslizar para as orelhas. Seria um caminho fácil até o pescoço e em seguida ela lançaria a coxa direita sobre as pernas dele. Ele tocaria seus pés e... 


Ele olhou para os pés e subitamente se interessou pelo que ela dizia. Ouviu com atenção irrevogável por uns quatro ou cinco longos minutos sem, contudo, obter pista do que desejava saber. Correndo o risco de explicitar uma injustificável ausência durante a meia hora anterior e correndo também o grande risco da indelicadeza por fazê-la repetir, perguntou objetivamente: 


__ ...Mas, onde você esteve hoje, antes de vir pra cá? 

__ Ah! Eu já disse! Vim resolver algumas coisas no centro pela manhã, encontrei uma amiga, ficamos andando até às... 

Ela não precisava dizer mais nada. Não importa o que estava dizendo. Não precisava. Que tipo de mulher sai de casa sabendo que vai caminhar e escolhe uma dessas sandálias baixinhas? Como ele poderia querer esta mulher tendo diante de si a visão de seu pé preto? E essa mochila, então? O que significava essa mochila? Dormir com ela sim, mas acordar ao lado dela nem pensar! Rompeu-se o encanto. Não queria mais. Querer o quê? Não havia nada ali para querer! Nada desejável, nada encantador, nada. 


Levantou-se sorrateiramente enquanto ela ainda dizia qualquer coisa sobre família. A dela? Não. Algo sobre cangurus. Foi até a cozinha e, enquanto esperava a água do filtro encher o copo, colocou o celular para despertar em dois minutos. Voltou à sala, sorriu, bebeu sua água e aguardou. O telefone tocou: 


__ Opa! Só um minutinho, querida. Preciso atender. Alô? Oi, cara! Sim, pode falar! Eu? Putz, é mesmo! Eu tinha me esquecido... Mas e se a gente deixasse isso pra amanhã? Hum? Sei... Ah... poxa vida... Sério? Não, então tudo bem! Tá bom. Tá. Tá. Então tô indo praí! Abração, cara! Tchau! 


E explicou pra ela, em outras palavras, claro, que estaria com outra mulher aquela noite. E, se ela quisesse saber quem, era só telefonar dentro de duas horas. Ele certamente já teria um nome.


9 de dezembro de 2012

Da série - Rascunhos


[TÉDIO É UMA COISA ASSIM QUE DÁ NA GENTE... QUE SENTE COMO SE NUNCA MAIS FOSSE DAR MAIS NADA...]



7 de dezembro de 2012

O "não" que vale


_ Papai! Eu quero um apontador... uma borracha... 
_ Pra quê? Pra perder? 
_ Não! Vou cuidar! 
_ Quero só ver.
_ E lápis de cor? Pode lápis de cor também? 
_ Não. 
_ Não? 
_ Não. Tá chegando o fim do ano. No ano que vem eu compro. 
_ Ah... por favor? 
_ Não. 
_ Tá. 

“Tá”? Como assim “tá”? 
A menina não vai se atirar no chão, pedir pelo amor de Deus, orar em nome de Santo Expedito, recitar o hino da consolação, sair correndo pelada gritando, tacar a cabeça na parede, morder o próprio braço, simular desmaio, nada? Nadica? 

_ Papai, você me ajuda a escolher o apontador? 
_ Claro! Tchô ver... Ah... todos são bonitos... Tem esse de estrela, olha que bonito! 
_ É... eu gostei... 
_ E o vermelho? O que você achou do vermelho? 
_ Eu gostei! 
_ Então pode ser. 
_ Posso pegar? 
_ Pode. 
_ Moça, o vermelho. 
_ ...por favor... 
_ Por favor, moça! 

E estava encerrado o assunto.
Sem mágoas.

4 de dezembro de 2012

Desforra


NINFA: Respirei aliviada. Por mim, Sócrates poderia terminar ali mesmo seu discurso e me daria por satisfeita, como quem participa de portentosa refeição. Assim era. E quantos, óh convivas de tantos reinos oriundos, quantos são esses terríveis homens sobre a terra, que pisam flores como fosse grama, que esmagam amor entre os dedos como material descartável às margens da grande arena. Os dramas que eu testemunhara eram somente por isso. Não creem esses homens pobres de espírito no que lhes anima a eles mesmos e lhes fala ao coração. Eros chega num repente e por falta de fé se despede e se desfaz sem que o mortal sequer dê à luz um único prodígio dele inspirado. Abafam suas boas artes no silêncio, na vergonha, na violência, no orgulho, na dúvida. Quantos homens assim esta terra ampararia?