31 de outubro de 2011

Das capacidades

No começo, escrever era uma necessidade externa, algo como resolver o problema do tédio diante de uma tela e duas opções: paint ou bloco de notas. Aos poucos virou uma necessidade orgânica de limpeza. Eu me sentava e executava ali solitária meu ritual de purificação, acasalando comigo mesma e gerando mornas as idéias foscas, recém saídas da adolescência febril, etapa de mortificação. Foi quando nasceu em mim o vício de perder as horas. Nunca estive completamente recuperada do irresistível impulso de passá-las mesmerizada numa ranhura qualquer de parede, chão ou teto.
Não me lembro como foi ou quando, mas percebi que estancar vida favorece a vida. Talvez aí tenha tido início o devaneio em que me meti, de achar que sei mais ao abandonar a divina luta de ser gente.
Foi nesse lugar onde notei que a morte não é coisa de se evitar, porque ao temer uma etapa de ser, somos com menos qualidade.
Aprendi a integridade do momento de morrer antes de chegar lá, então penso que não será difícil e aí meu enleio paira. É quase querer, mas não pela morte, num modo grotesco de antecipá-la ou sucumbir.
Trata-se de um outro proceder que se descobre por ser menos vivo e atento, menos atingido pelo estímulo chamado mundo.
Algum motivo que não me parece razoável (não importa quanto esforço eu faça) sustenta o choque dessa revelação, que pode não passar de ilusão.
Pode ser pretensão existir e pensar que vive, querer resistir, querer se entregar.
Mas o fato que não me larga é essa crença ingênua no peito, que vez me dói de um vazio excruciante, outra vez me contenta fácil, que há outro eu em mim que se desprega quando eu durmo e sonho livre.
Alguém que também sou me reside, faz de mim esquizofrênica busca por aquela que vejo e se mantém inatingível, de canga branca até os pés. Dizem ser azul claro a cor do meu espírito falido em ser só o que se é essencialmente. Tive de vir pesada e agora me reclamo a ausência, pois desejo me mostrar que sempre estou fora de mim.
Encaixe bonito acontece quando um outro me completa despretensiosamente ou diz, sem querer, o que me ocorria enquanto eu bem silenciava.
Sou feita desses que me esbarram e me inventam muito melhor do que posso ser na verdade.
Naquela hora perdida, proposital e vítima ainda, sinto que não há nada de suicida na transgressão de se desejar mais efêmero, posto que nascemos e crescemos minguantes.
É viscosa e teima a espera do outro dia. E inútil. É um impulso de vivo que, neutralizado, faz de nós mais vivos, recorrentes em expressar o inexprimível. É essa a função da língua: nomear para capturar e passar adiante. A função da memória, no entanto, é esquecer que não podemos.

Eu sou boa em esquecer. Por isso escrevo.

27 de outubro de 2011

Notícias

É um momento histórico te saber em casa sozinho, lavando a roupa numa sexta-feira à noite. Não porque te seja atípico ou digno de nota que não tenhas companhia ou que tuas preferências não te levaram a outra parte. Somente que sinto, sutil e não tão lenta, a humanidade se fazendo nesse trecho de relato.

Terminamos a faculdade e aceitamos fazer coisas que pedem menos do que há em nós. A necessidade brutaliza e sossegamos no salário um tempo curto.
Não é por nada, mas é que me pareceu história viva te imaginar pendurando cuecas e meias no varal. Antes de nós, cena dessa foi feita filme, poesia, série de TV, manifesto, contrabando, escravidão.

Na nossa vez, porém, sobrou que ser o anônimo cozinhando spaghetti quebrado pra caber na panela pequena. Hidrotônico de uva verde em cima da mesa do jantar e solidão, porque a mãe que te espera o filho foi escolha precipitada ou acidente.

Onde a poesia parece dissolver e se refaz em seguida: é lá que a gente se encontra. Não junto. Você se encontra com você e eu comigo mesma. É na tentativa primata de seguir sendo que podemos nos olhar, reconhecer e, quem sabe, furar o cerco dos olhares que não nos olham. Talvez façamos algo que fira a visão indolente dos que nos ignoram tão facilmente. Quem sabe que um dia seja um esforço deixar de perceber a riqueza de aparecer na janela de uma kit da rua Aurora, porque mora ali alguém que deixa suas meias de molho para não ter que esfregar muito.

Não é pouca coisa a peculiaridade que cabe nas suas escolhas mínimas e devia haver um Morumbi inteiro que nos aplaudisse quando déssemos tchauzinho também. Porque nós vemos poesia no breu, no só, no mau e nas palavras de mais sílabas. Somos resistentes e, à nossa vez, a vanguarda do novo mundo novo.
É a história vociferando em nós no detalhe da sexta à noite, eu senti.


13 de outubro de 2011

No Aquário

Parei diante de uma tartaruga estranha, cujas patas pareciam pedras. Por ter histórico de tartarugas na família, fiquei ali algum tempo, contemplando aquela esquisitice da natureza através do vidro. Meu amigo, de olhos verdes certeiros, aproximou-se e disse, com aquele ar solene de quem informa:

_ Ela morde.

Pensei um pouco e, inconformada com tal sapiência, que não poderia ser empírica, perguntei:

_ Como você sabe?

_ O nome dela é tartaruga-mordedora.

Olhei para a placa com as informações do animal e, antes que pudesse responder, um espectador anônimo próximo salvou a questão:

_ Faz sentido, hein? Faz sentido...


9 de outubro de 2011

Jedi, 6ª

_ Sabe Camila, há um tempo atrás eu li um livro chamado A Arte Cavalheiresca Do Arqueiro Zen. É um livro muito bom, eu gostei bastante. A história é de um filósofo alemão que vai pro Japão aprender a manejar arco e flecha. Em determinado ponto o aprendiz está muito bom em acertar os alvos e seu mestre diz a ele que não é só isso. Ele aprendeu a acertar o alvo, mas não aprendeu mais nada. A questão não é o alvo, mas aquele momento exatamente antes de disparar a flecha, aquela tensão no arco antes do disparo. Esse é o momento importante. E o livro conta isso de uma forma muito poética, muito bonita. Por que você está sorrindo?

_ Porque me deu vontade de ler esse livro.

_ Tudo bem. Eu posso trazer para você. Mas o que eu estava dizendo... é... que você é isso. Essa tensão.

_ Eu sou um “quase”?

_ Não. Você é o momento que importa, Camila.

5 de outubro de 2011

Stillness

Nessa hora de almoço, como alguém que descobre o que é sagrado, percebi que poderia passar muito tempo... anos... apenas olhando a vida, sem viver, sem interferir.

Lançada ali
rija e frágil
quanto a árvore
ao lado repousada
ambas plantadas
no cimento cinza
morríamos um pouco
ao ver passar
as gentes
lentamente...

Rezávamos silenciosas
para um Deus
que nos mostrasse -
inevitável
e de um vigor
que não se ignora -
o que se vê
quando acordamos
para o céu
que há de ser
Verdade.

3 de outubro de 2011

Depurar

Após alcançar o requinte máximo da expressão – a linguagem suficiente – o refinamento seguinte é não precisá-la. A evolução do vocábulo é desaparecer com ele, entender e fazer entender a sutileza extrema dos gestos simples, não vocalizáveis. A finalidade da simbologia é a telepatia. Toda relação humana é, afinal, uma conversa de mentes.