31 de março de 2009

Quando o invisível nos salta aos olhos

Ali, num cruzamento, entre construções ostensivas, onde nenhum desconto é o bastante para o consumo justo e justificável, ele vagava cambaleante com uma moedinha numa mão, e a outra vazia.
Desistido de entender sua própria realidade, mas também a outra que não era a dele, não entendia mais nada, e nem queria mais.

A temerança substituiu a temperança e era somente com ela que ele batia de levinho, a mãozinha fraca no vidro fumê que acelerava um pouquinho à sua aproximação. Só por higiene, nada pessoal.
Quem tinha a sorte de vê-lo, passando bem diante dos faróis, notava logo a desdita e desviava a mirada. Outras poluições eram bem menos desagradáveis do que aquela, inútil que era, pousada num ser sem banho.

E os passinhos seguiam cambaleando o ser, equilibrando uma existência em quase nada, no meio fio da falta de valor. Afinal, que valor pode ter alguém sem banho e sem mais moedas a não ser as que lhe dão? Nenhum, é claro! O valor de alguém vem das moedas que tem e alguém que tem moedas decerto teria um banho também.
O rostinho apagado e puído, escondido numa fragilidade vergonhosa e envergonhada, mal podia deixar que seus olhos se mostrassem àqueles a quem olhava sem ver.

Como se vestisse um saco de pão e um sapato antes gasto do que jazia agora a seus pés, tudo lhe ancorava e lhe desistia. Até que o semáforo, corado de falta de jeito e desaprovação, aliviou-se em permissão para que todos se livrassem de tamanho constrangimento. Todos, menos um. E aquele semáforo entendeu a relatividade de Einstein em menos de um segundo.

30 de março de 2009

Da série - Histerias Urbanas, claquete: 3

Subindo a Augusta na direção Paulista, vindo do centro.
Na altura da altura preferida dos camelôs alguém grita:

_ Óia o raaaapaaa...!!

Pause na cena.
Imaginando que você, leitor, é uma distinta senhora parada numa barraca de dvd’s, o que faria?
Bem, eu não faria isso:

_ Ai, quer ajuda?

Pois é. Ela fez.
Por falta de jeito não parei na calçada para acompanhar o desenvolvimento da cena. Mas, obviamente, fiz várias simulações mentais da réplica:

_ Quero. Metade metade. Corre pra baixo que eu corro pra cima. A gente se vê aqui depois!

Ou então:

_ Sim. Isso seria ótimo. Faz assim: quando os policiais chegarem diz que tudo isso aqui é seu, por favor.

Ou ainda:

_ Tá. Pega na outra ponta que eu pego nessa. Vâmo corrê pra lá! Rápido!

Ai ai...
Acho a solidariedade uma coisa tão bonita...
(((suspiro)))

28 de março de 2009

Domesticada e assistida

Como eu estava dizendo... acredito mesmo na anarquia produtiva. Não há lugar, por exemplo, onde eu produza mais do que aqui:




Mas é claro que levo em consideração padrões de produção menos massacrantes e, por isso mesmo, mais humanos e menos lucrativos. Fazer o quê? Não se pode ter tudo.

Quando as máquinas não existiam precisávamos trabalhar muito para sobreviver. Mas, agora que elas existem, precisamos trabalhar muito para sobreviver. Se fazemos muito mais em muito menos tempo, por que trabalhar tanto e criar tão pouco? É claro que estou partindo do pressuposto onde a atividade remunerada que atende ao anseio do talento, da criação e da inclusão é privilégio de poucos e, obviamente também, não estou dizendo nenhuma novidade.

Se esse trabalho não atende princípios humanos básicos de uma relação social saudável, por quê mantê-lo? Sim sim, claro. Mantê-lo para manter-se.

A liberdade não parece pouco provável, olhando por essa perspectiva?

27 de março de 2009

Boi na linha

Onze da manhã, mensagem por celular:

“Parabéns, apesar de você comemorar a morte do meu pai. Rs. Saudades. Te amo. Parabéns.”

O número do remetente me era desconhecido.
Passei o dia recobrando minhas memórias, contabilizando todas as mortes que eu já comemorei na vida. E o parabéns? Será que foi alguém que confundiu 18 de dezembro com 27 de março? Razoável... Mas e o “eu te amo”? Me ama? Quem me ama e eu não tô sabendo???

À noite, outra:

“Não vem, não?”

Não. Sem saber quem é, não vou. Quer dizer... até vou. Pelo meu caminho.
Eu, hein?! Gente doida...

26 de março de 2009

MENOSprezanDoTe(s)

Se os livros não existissem, eu teria de inventá-los.
Da mesma forma que a vassoura. Eu teria de inventar um jeito de tirar o pó e puxar a sujeirinha seca do chão e pensaria em algo próximo de uma vassoura, mas talvez tivesse um nome mais bonito e original, tipo vassujeira.

Se o dicionário não existisse, eu daria um jeito de catalogar as palavras eu mesma, uma por uma. Já comecei este trabalho quando eu era pequena, a fim de contar as palavras conhecidas por mim, mas desisti quando cai nos verbos conjugados e vi que já tinham feito isso no livro de português da terceira série.

Se a música, a dança, o piano, a deusa, o deus, a política e o miojo não existissem fatalmente eu teria que inventá-los.
E eu inventei a anarquia produtiva, mas só consegui implementá-la no meu quarto, por enquanto.

Quando os burocratas descobrirem que funciona, vão procurar pelos meus descendentes e contemplarão meu jazigo. Mas será tarde demais para aflorar os talentos e amores perdidos na papelada.

24 de março de 2009

Só o essencial

Base, blush, lápis, delineador, rímel, batom, brincos, colar, anéis, top, peitos, shorts, pernas, cabelos, perfume, saltos, bolsa, chiclete, estampa de oncinha, jaqueta e caderno. Claro! Afinal, vai que tem que anotar alguma coisa na aula, né não?

23 de março de 2009

Estética, pra quê te quero?

_ Você gosta desse sapato?
_ É... é bonito. Bem bonito. Eu gostei. Fica com ele!
_ Gostou?
_ Adorei!
_ Você levaria?
_ Ah... sei lá... Eu acho bonito, mas não pra mim.
_ Como assim? Se não usaria porque tá dizendo pra eu levar?
_ Ah, porque fica bem em você!
_ E por quê fica bem em mim mas não serve pra você?
_ Sei lá. Não combina comigo eu acho. Gosto de coisas mais sofisticadas...

_ Tá me chamando de rampeira?
_ Não... é só que prefiro salto alto, bico fino e fivela do lado.

_ Tem razão. Esse é horrível!!!
_ Não... combina com você.
_ Por quê? Eu também sou horrível?
_ Não. Você é bonita e o sapato é bonito. Só estou dizendo que os meus valores estéticos perpassam meu repertório histórico-cultural, ou seja, estou atrelada ao julgamento de minhas percepções que dependem do meu tempo e espaço. E, embora estejamos divindo o mesmo tempo e espaço neste momento, não foi sempre assim. Logo, o julgamento estético que faço desse algo que é o sapato faz com que eu conclua que ele não reflete minha personalidade, o que não significa que não faça o mesmo por você, já que sua percepção estética é diferente, uma vez que sua interação com o mundo foi diferente, a partir de suas experiências únicas. Fica com ele.

_ Engole isso. Não quero mais nada, dona personalidade. Idiota. Nunca mais saio com você.
_ Nossa... que perceptus sensível... e que resposta agressiva...
_ Cala a boca!

22 de março de 2009

Reflexivo

Se sua vida está em perigo você tenta salva-lá.
Se a vida de outra pessoa está em perigo você tenta salvá-la.
Se a vida de alguém que é a sua própria vida está em perigo você tenta salvar-se.

19 de março de 2009

18 de março de 2009

Tcharãããããmmmmm

Para quem tiver coragem de ler uma lauda inteirinha, um presente num clique:


Reforma ortográfica: a correção dos dias numa narrativa confusa, imaginada por uma mente que insiste em acreditar que pode ser original.


Quem não tiver pode só votar na nova enquete destes Dados. Eu posso conviver com isso.

17 de março de 2009

Já basta

Qual é o aumentativo de compreensão?
E de chão?
E de solidão?

Para algumas palavras não cabem aumentativos.
Assim como para outras não cabem diminutivos.

Para quê dizer que um ninho é menor do que já aparenta?
E para quê dizer que o fino é fininho?
E que o carinho é zinho?

Da mesma forma algumas palavras já nascem prontas e não pedem mais.
Por exemplo: cotonete. Qual é a necessidade de alguém enfatizar que se trata de um cotonetinho ou um cotonetão?

_ Por favor, você tem cotonetes?
_ Sim. Na terceira prateleira.
_ Ah... não... esses são muito pequenos. Pensei em cotonetões.
_ Não, não. Só temos P.
_ Então não serve, obrigado.

Isso seria o mesmo que tentar explicar o quão grande é a amplidão.
Ou encontrar variações de amizade.
Amizadão? Amizadinha?

Amplidão.
Amizade.
Sozinho.
Título.

16 de março de 2009

Inacostumáveis

Acordar com uma britadeira fazendo tremer céus e terras de segunda a sábado.

14 de março de 2009

DeLIBERADAmente

Acho particularmente irritante quando alguém responde a uma pergunta com outra pergunta que não vem ao caso para a resolução da primeira dúvida.

Assim:

_ Ivan, tem roupa pra lavar?
_ Quando?

Mon Dieu, que diferença faz quando a pessoa que perguntou vai lavar??? Primeiro que se ela perguntou, é lógico que está na iminência da necessidade da resposta. Segundo que, mesmo se for lavar depois... Não dá pra só responder???

_ Você me ama?
_ Sim.

É mais fácil!
...Embora nada garanta a honestidade...
Mas daí é uma outra dúvida...

_ Sério? E como pode ser isso se você faz questão de aparentar não estar nem aí pra mim?
_ Ah... estão sendo dias difíceis... muito trabalho...

13 de março de 2009

Desencanto em looping eterno

...e as poesias existem porque os poetas existem. E os poetas existem porque a vida acontece. E a vida acontece porque o amor aconteceu antes dela. E o amor acontece porque existem poesias...

12 de março de 2009

11 de março de 2009

He said

Last night she said
Oh, Baby, I don't feel so down
Oh, and turned me off
When I feel left out
So I, I turned around
Oh, baby, I don't care no more
I know this for sure
I'm walking out that door

10 de março de 2009

Sobre alguém que não é um re-luz-ente

Ela fazia questão. Absoluta questão de permanecer lá, entre todas as outras, esperando pelo ônibus, embora.

Muito embora ela não fosse, nem iria, não importava o ônibus.

Ela não queria um encaminhador, queria um destino primeiro. O modo de se chegar lá poderia ser pensado depois.

Mas ela? Ela não. Pensava. Não pensava.

Pensar em quê se caminho não tinha? Nem destino tinha! Nem um como! Nem por onde! Nem mais nada! Nem vontade! Nem certeza! Nem dúvida tinha! Tamanha era a vontade de sequer ter vontade e não tinha!

_ Nada?
_ Sim.

Sujeira entre as unhas tinha.

Algo cinza que maculava sua pele negra, tinha.

Seu compasso desritmado por alguma dor também havia.

Um adormecimento - meio proposital, meio sem querer - dos sentidos também acontecia.

E sim, claro.

Também aquela falta de brilho indecifrável que a acometia.

9 de março de 2009

"Ditabranda"

8 de março de 2009

Culp(h)abilidade

Não vejo motivos para comemorar algo que não veio por mérito de meus esforços e escolhas.
Minha cor, meu cabelo, minha origem, meu sexo.
Eu não escolhi.
De qualquer forma, ninguém se lembrou da comemorável condição feminina quando do veto, da fuga, da queima.
Direitos humanos são conquistas. E estas sim merecem comemoração.
Mas não é disso que nos lembra o Boticário, a C&A, as floriculturas, os restaurantes, os comentários...

_ Parabéns!
_ Valeu. Pra você também.
_ Mas eu sou homem.
_ Pois é. Eu não tenho culpa. O que estávamos falando mesmo? Ah... sim...

6 de março de 2009

Twilove

_ Aaaaahhhh...
_ Lindo!

_ Incrível!!!

Olhei direitinho na direção da banca. Será possível que essa farra toda é pelo salgadinho Torcida?

_ Ahhh... Tenho um pôster!

Será que a Ruffles lançou um pô
ster da batata?

_ Suuuuuper legal...!!!


...E o grupo saiu da frente, deixando visível a face do Edward Cullen na capa de uma revista para adolescentes.

_ Hum. Tendi. É. Faz sentido.


5 de março de 2009

Cas(u)ais

Um beijo... (smac!) Dois beijos... (smac!) Três beijos... (smac!) Um milhão de beijos... (smac!)

_ Um milhão de beijos???
_ Ixi! É mesmo! Me perdi! Vâmo tê que começá denovo.


Um beijo... (smac!) Dois beijos... (smac!) Três beijos... (smac!) Um milhão de beijos... (smac!) ...E me perdi.

3 de março de 2009

_Baseado_em fatos reais

Cheguei a pensar que estava vendo algo como um lago e árvores.
A visão do oasis me fez imaginar que estava tendo alucinações.
Os pés afundavam na areia seca e o sol parecia fogo nas pontas castanhas do cabelo que o vento parco tentava soprar.
Era um silêncio surdo e eu não sabia se eram os meus sentidos falhando ou se, de fato, nada ao redor emitia som, a não ser um provável fritar. E era eu, tostando na duna.
Um insetinho surgiu e sumiu na poeira amarela. Eu andava para aquela paisagem que às vezes estava, às vezes não.


_ Bom dia!
_ São dez da manhã e estamos 33 graus longe do zero. Como ter um bom dia?
_ Legal. Podemos ir direto para a segunda má notícia do dia?
_ Ao meio-dia estará pior.
_ Terceira?
_ Tenho que ir ao banco na hora do almoço.
_ Quarta?
_ Só teremos uma frente fria na quinta.
_ Quinta?
_ Sim. Quinta-feira.
_ Quinta má notícia.
_ Ah... sim... Não terminei aquela matéria ainda.
_ Você tem uma hora.
_ Sexta.
_ Vai lá!
_ Já foi. A sua. Tenho uma hora só.
_ Ah... é mesmo! Manda bala.
_ Fechamos a semana, hein?!
_ É. Já deu, né?

1 de março de 2009

Da série - ErrOr Fatalll... BUUUM!

Eu tenho 22 anos.
E isso pode parecer muito pouco.
Ou muito muito.

Para uma modelo é quase fim de carreira.
Para uma jornalista é só o começo do princípio.

Para namorar um menino de 17 anos é muito.
Para ser presidente é pouco.

Mas eu tenho 22 anos.
E nenhuma intenção de resolver essa ambiguidade discursiva.
Nem a léxica: