26 de janeiro de 2012

Ao confessor

É pavor que sinto no teu soluço de criança, teu hálito com frequência interrompido e me vejo nos teus olhos claros esverdeados, súbitos espelhos onde me encontro, em repulsa me acho. Nada vale o teu sofrimento; assistir teu lábio balbuciante me faz te querer mais. É certeiro o sal de toda a tua lástima engrossar meu sangue, desesperar.

Atenta, antes de ser frágil, que meu colo se alarga à mira de tuas singelas necessidades. Esparrama teu mundo ao meu lado estendido, conta-me tudo, palavra por palavra, temos o tempo e a chuva lá fora, há verão e outono ininterruptos, de toda a maneira vamos envelhecer. É cuidado que te tenho até nos dias de deslizes torpes, dos pecados há de flagrar antigos hábitos meus rabiscos, os ensaios das melhoras que anseio tomada de júbilo a cada pequeno sinal. Não contes ainda meus acertos nem te orgulhes dos meus feitos bons superada a natureza cruel de subordinações inveteradas, apalpa o escuro até no lado claro, questiona, interroga, descubramos juntos o que também não sei de mim, o que não sabes de ti, o que não está terminado em nós.

Não me imagines anjo ou te faças infalível porque tua queda me apaixona e eu não sei amar heróis. Não escondas teus olhos subitamente tão claros. É no movimento deles que me guio a te querer acompanhar tal doçura dessa dor de crescimento.

17 de janeiro de 2012

Estilhaço

Foi com íntima verdade que ali deitei a vontade de eternizar o fim da madrugada. Eu sabia que estava dando um passo irreversível e satanizado, digno de não ser digno, talvez, algo que não fosse abençoado.
Eu insisti, sei. O argumento do perigo fez cócegas no meu desaviso dos abismos. Era o desvio que eu ansiava. Saltei daquele ponto maldito para um naufrágio que haveria de ser bom.
Havia de ser bom.
A minha aposta era nisso.
Havia de ser bom.
Ainda assim, foi incrédula que constatei que era bom.
Ora rejeitada, ora eu mesma por mim rejeitada e o papel a que me prestava, que de desvarios estava farta e só queria a sandice cafona de dias que não prenunciassem seu fim, mas fossem indefinidamente continuados.
Foi como violar um ambiente sacro, supostamente fraterno, que não está a salvo da mazela, do desperdício. E com patas sagitarianas pisei o terreno dos alarmes inaudíveis, das monstruosidades. O caminho da impaciência.
Eu fiz o caminho da impaciência como fosse Santiago. Entendo que o precipício é mais humano que a virtude e assenti ao ouvir que ele se havia deixado levar e fui eu a pecadora que com audácia resvalou pela fraqueza da vítima indefesa e se alojou naquele peito como a bala que se perde não antes, mas depois de ferir.
Eu me perdi.
Eu trapaceei no jogo inútil, rasguei os acordos tácitos como papéis sem serventia. Não tinham, afinal, uso para a nova situação que se instalava: a liberdade.
Tão perigosa.
Ácida, corrosiva a liberdade.
Sem volta.
Quando atinei para o que aquilo significava, veio junto a solidão e a loucura de muito tempo cultivada em nome daquilo mesmo que desagregava e fazia fome. Acreditei, sim. Fosse feia a derrota por dentro vista e abandonávamos logo. Mas não. De fora é que notam a miséria ali se revelando e debatendo como um auto-algoz. Nos oferecemos em sacrifício e achamos bonito isso. Era dessa feita que me vi primeiro ao solo, depois mais e mais soterrada do entulho do mundo, lembrança podre tecendo larvas àquele cadáver exposto que eu ensaiava ser.
Seria simples. “Levanta-te e anda” quando não houver mais espaço expansível. Haverá mais em outros sítios. Sempre há mais para a pequenez humana. E eu quieta, aprendendo a arte da obediência e da insensatez para não esquecer, fui cedendo mais e mais aos vermes, à corrosão do vacilo. Mas livrei-me quase a tempo, algo antes de ver em mim morrer de vez o que já dava sinais de envergadura e velhice precoce. Foi da vez, a última, em que acreditei no tal Deus que sabe dançar, para vê-lo sapatear meus neurônios de gente.
Frágil-frágil a dança dos interesses contidos, matrimônio e desunião num continuado de folhas cadentes e erupção. A terra também geme e por um instante me alivia pensar como a me dar consentimento. Eu hei de sofrer também e testemunhar o grito do parto, do caos, da ferida, do bote, do mal. Eu também posso gemer nessa fuga dos bichos estranhos da noite, mosca, sorte.
Necessito, no entanto, reaprender a conta-los. Preciso com urgência, modorra, náuseas, reaprender a falar. A atrofia da ligação entre palato e coração, verborrágico silêncio, espera o ritmo se instalar para gozar de novo a ingenuidade, ou pelo menos a serenidade diante da desilusão. Não há salvação, mas pode haver gozo no trajeto até a perdição infinita, eterna, onde seremos sal, evaporada a lágrima, e pó. Ex-desejo e imundice contaminando o chão das deidades fúnebres.
Animais não têm númenes. Foi lenda aquela de mãe que dada água na concha a criança desandava a falar. Pensou ela que deu certo porque apresentei indícios de repetição, ao que agora encontrei minha verdadeira vocação: o gênio de calar.
Mas eu preciso, como enferma da cura, descobrir de um outro pronome o encantamento.

Eu preciso aprender, sobretudo aprender, a dizer em voz alta:

Nós.

E seguir conjugando os verbos que lhe são destinados.