18 de abril de 2013

Existe sim


Fui em direção à porta. O guarda também:

__ Ah... está trancada?
__ Não. Mas a senhorita acha que não existe mais cavalheirismo? – e abriu pra mim.

16 de abril de 2013

Do difícil


Já faz um tempo, fui almoçar reparando nos anúncios do caminho: park, nail care, hair stylist, drinks. No menu do restaurante, duas opções de omelete. Chamei o garçom:

__ Um omelete de queijo, por favor. E feijão.
__ Um omelete de queijo?
__ Sim.
__ Só de queijo?
__ Sim.
__ Mais nada? – com expressão de incredulidade.
__ Não.
__ Espera. Ô fulano! Olha, ela pediu um omelete só com queijo e quer trocar o resto por feijão!
__ Não, não. Não foi isso que eu disse. Eu quero o feijão à parte, uma guarnição. E um omelete simples.
__ Só com queijo! Sem mais nada!
__ Sim. Só com queijo.
__ Nem salsinha! – gritando pro outro.
__ Pode ter salsinha.
__ Ah! Então queijo, presunto, salsinha...

Peguei o menu pra apontar:

__ Vamos lá: existem dois tipos de omelete aqui. O Completo e o Misto. Eu quero o misto. Só que sem presunto. Feijão à parte.
__ Ah...

Esses dias, o cavalheiro lutava pelo nosso desjejum.

__ Um queijo quente, por favor.
__ Prato?
__ Um queijo quente.
__ Só tem prato.
__ Sim, mas é quente?
__ O queijo é prato.
__ Tá. Mas pode ser quente?
__ Sim. Quente.
__ Então tá.
__ Então o queijo prato quente?
__ Sim.

E tentou o café:

__ E um café com leite.
__ Café?
__ Sim. Com leite.
__ Com leite?
__ Isso.
__ Café com leite?
__ Sim.
__ Médio?
__ Isso.
__ Ou pequeno?
__ Médio.
__ Café com leite?
__ Sim.
__ Médio, né?
__ Isso.

Imagina se a gente fosse pro drink:

__ Um dry martini, por favor.
__ Martini?

(((suspiro)))

A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéia em comum. O que quer dizer “ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual não posso concordar, mas entendo tudo o que dizem.

Gilles Deleuze em entrevista para Claire Parnet, em o Abecedário de Gilles Deleuze.

14 de abril de 2013

Como faz?


12 de abril de 2013

Vozes da civilização


__ Eu achei... um real no chão do seu quarto. Daí eu peguei. Achado não é roubado!

11 de abril de 2013

Da série - Rascunhos

[SEGURANÇA EM PRIMEIRO LUGAR!]


5 de abril de 2013

Aprendi a ser menina


Mas ninguém me ensinou a gostar de azul. Posso garantir que nasci gostando, porque me lembro de quando era bem pequena, na escolinha. A professora distribuía latas com lápis colorido nas mesinhas. Cada mesa tinha um grupo de três ou quatro crianças e eu seguia meu ritual: examinava a latinha. Se tivesse aquele tom de azul manto, eu pegava e começava a pintar. Não importava qual era o desenho. Casa, árvore, pessoas, panquecas ou chinchilas. Tudo virava uma desordenada massa azul. Mas e quando aquele tom específico de azul não vinha na latinha do meu grupo? Alguém tinha que fazer alguma coisa! 

Descia da cadeeeira... e ia passando por todas as mesas, olhando a latinha alheia. Encontrando meu lápis, simplesmente pegava sem pedir permissão e voltava para o meu desenho. Lembro bem a sensação indistinta e boa de olhar aquele azul. Eu não me perguntava por que, simplesmente sentia o prazer-azul e o procurava porque queria. Até que um dia, ao notar minha busca regular, uma criança comentou em voz alta: “lá vem a Camila roubar nosso azul! Você não devia fazer isso! Azul é coisa de menino!”. 

A minha reação? Exatamente zero. Aquilo simplesmente não fez o menor sentido pra mim. Ouvi, mas não entendi. Segui minha trajetória até a lata alheia e peguei o lápis azul. O assunto nem sequer ecoou no meu coração. “Coisa de menino”? Sabe-se lá o que é “coisa” e o que é “menino”. Mas tempos depois, entendi naquela mesma sala o que vinha ignorando. 

Era dia das mães e cada um fez um cartãozinho. Depois que todo mundo acabou, a professora chamou um por um lá na frente pra passar batom e dar um beijo no cartão pra mamãe. Antes de mim foi um menino. Ele disse pra professora que não queria passar batom e ela explicou que ia ser pra mamãe, bem rapidinho, e em seguida ele tiraria. Senti o climão. O colega estava desconfortável, mas aceitou. Alguém da plateia gritou: “a-há! ele é menina, ele é menina!”. O menino ficou bravo. A professora lutou para ter a atenção dele focada no cartão. Ele beijou o papel, saiu correndo e foi pro banheiro lavar. A professora foi atrás pra ajudar. 

Daí chegou a minha vez. Passei o batom numa boa, beijei o papel e segui o procedimento do colega: corri pro banheiro lavar. Até que alguém riu de mim: “a-há! você não precisa tirar, sua boba! você é menina, pode usar batom!”. 

Foi um baque.
Eu sou menina??? Como assim eu sou menina??? É por isso que eu posso usar batom??? Menino não pode??? Então é por isso que falaram do lápis azul??? 


Rolou uma confusão mental ali na hora. O azul, pela primeira vez, tinha significado. A partir daí foi uma vasta série de aprendizados sobre como ser a menina que eu nasci sendo. Algumas vezes era fácil. Eu adorava usar vestido. Outras vezes era mais difícil. Os brincos faziam coçar as orelhas. Quem me acha feminina hoje vê aí uma coincidência. Coincidiu de eu normalmente produzir e gostar dos efeitos notadamente esperados do meu gênero, embora Marilyn Monroe tenha sido muuuito melhor nisso do que eu. 

Há alguns anos, conheci uma adolescente que me contou que um dia, ainda criança, durante as atividades de desenho e pintura, respondeu uma pergunta com outra pergunta: 

__ Me empresta o lápis cor da pele? 
__ Cor da pele de quem? 

O lápis “cor da pele”, róseo e claro, deixava a Simone confusa. Se ela chamasse o lápis marrom de “cor da pele” também, será que os outros entenderiam qual ela queria? 


Os fatos narrados se deram mais ou menos nessa época aqui. Na ocasião da foto me sentia particularmente impelida a demonstrar parental afeto pelo bicho de pelúcia cafuzo, dias antes de prender as unhas do meu gato na gaveta. Reparem vocês que nasci tailandesa. Só fui me naturalizar brasileira quando... Bem, isso ainda não é muito natural pra mim.

3 de abril de 2013

Da série - Rascunhos





























Compromisso é absinto 
tomado de um gole sucinto 
"estou" 
e não se fala mais nisso.

1 de abril de 2013

Tipicalidades


Descendo a rua, olhava para o senhorzinho lavando a calçada. Aparentemente ele também me viu: 

__ Ah!, sabe o quê? Vou dar para a senhorita um calendário de Nossa Senhora Aparecida. Você quer um calendário de Nossa Senhora Aparecida? 
__ ...hu... sim... 
__ Então vem aqui que eu vou te dar. Quantos? 
__ Um só já está bom. Obrigada. 
__ E a família? 
__ Vai bem... 
__ Quer levar pra família também? Você tem irmãos? 
__ Uma irmã. 
__ Então vou te dar uns... 
__ Dois tá bom. 
__ Isso! Seis! E uma revista também! 
__ Ah... obrigada... 
__ Já ouviu falar nos Arautos do Senhor? 
__ Sim. 
__ Ah, já? Eles defendem teses de mestrado e doutorado em filosofia, teologia... Você estuda? 
__ Sim. 
__ O quê? Ah, é??? Onde? Ah, então!!! Que maravilha! Eles defendem... e tem teses de... e na Colômbia... em espanhol... recebem missionários... muito bonito... trabalhos... e também... e záz... e... 

Após uma longa conversa, algumas ligações perdidas no celular (é falta de educação interromper os mais velhos) e alguns calendários depois (para solicitar o seu, basta fazer o pedido via comentário; estou distribuindo os remanescentes), consegui seguir caminho. No elevador, o vizinho precisava desabafar: 

__ Eu me separei, né? E sou amigo da minha ex. Mas a pior coisa que eu fiz na vida foi ficar amigo da ex. 
__ É mesmo? 
__ É. Ela me faz de gato e sapato. Estou pintando o apartamento... parte elétrica e parte hidráulica... é bipolar e... aquele prédio ali? Então, brigou com a síndica, que era japonesa... São José dos Campos... móveis coloniais, madeira... e goteira... dava choque... e minha sogra... e desmaiada... fibromialgia... o cachorro... eu estou... e meu filho, cê acredita?, namorada bipolar... operou de câncer 3 vezes... e dorme na sala... e minha mãe... e a mãe dela... e a briga... e sobra... e eu já falei... e eu não sei... e eu queria ir ao cinema... minha aposentadoria... comecei a trabalhar com 12, com 13 fui registrado lá na... E desde então... 

40 minutos depois, com o regozijo da boa vizinhança, completei a longa trajetória de dez passos até minha casa.