É uma situação peculiar. Pessoas morrem todos os dias, mas não da sua família. Então, a ocasião é mesmo um caso a ser desvendado. E em grupo. Parentes chegam de todos os lugares. Muitos, inclusive, descobrem seu parentesco ali mesmo e aproveitam para rascunhar a árvore genealógica atrás do ticket do estacionamento:
__ Olha, Evandro, esse aqui é o Nivaldo, esposo da Armênia, filha do Gerônimo e da Claudete, lembra da Claudete?, tia da Anastácia e da Carmela, a que teve o Reginaldo depois que se separou do Moacir e se casou com...
__ ...Tá. Começa de novo que agora eu vou anotando aqui. Nivaldo... esposo-Armênia-filha-Gerônimo-Claudete-que... Ah! Não foi a Claudete do Cícero?, que traiu o tio quando... nossa!, eu me lembro... foi um escândalo...
Lembranças. O importante é ter recordações, mesmo que só de fatos que não se conectem com rostos.
__ Sinto muito...
__ Oi... eu também sinto muito...
__ ...
__ Quem é esse mesmo que a gente cumprimentou agora?
__ O filho do morto.
__ Ahn...
Mas meus personagens favoritos são os francos, os que riem deslavadamente, aproveitam a oportunidade para um encontro informal e uma roda de conversa descontraída ao lado do caixão. Comentam a novela, contam aquela do papagaio, falam do cachorro que, espertíssimo, corre pra cozinha ao apito do microondas, a vida conjugal da vizinha, algum problema de saúde que eventualmente lembre o estado do recém-falecido e outras especulações felizes sobre a grande graça de estar ali.
Grávidas, então, viram o centro das atenções. Celebrações efusivas à nova vida contagiam o ambiente e merecem as flores das coroas e as velas pelo anjinho que virá.
Alguém, mais emotivo, quebra o clima de confraternização com um choro copioso, inconveniente.
__ Nossa, gente. Quem é esse, fazendo esse escândalo todo?
__ O filho do morto. Já falei!
__ Ah, é! Tinha esquecido!
Os mais revoltosos procuram culpados. A viúva é sempre a primeira suspeita e não demora para começar a coçar a orelha esquerda. Seja como for, o mistério precisa ser esclarecido, na esperança de que o quadro seja revertido e o defunto se levante. Um pequeno e seleto grupo, mais consciencioso, se dedica a examinar os papéis, usando a tampa do caixão para separar os documentos e avaliar com acuidade:
__ Deixa eu te mostrar o atestado de óbito. Olha aqui. “Causa mortis: infecção generalizada”.
__ Mas foi feita autópsia?
__ Sim, sim. Ele morreu no hospital, mas fizeram. Até demoraram para avisar. Olha. Duas da manhã. Mas só ligaram às 9h. Deve ser por isso.
__ Mas a infecção por causa da perna, ainda?
__ Deve ter sido quando ele tirou a prótese.
__ E se não foi?
__ Deve ter sido.
__ Foi depois da queda.
__ É. Foi depois da queda.
__ Então foi a queda! Essa queda aí tá mal explicada... E se ele foi empurrado?
__ É... é fácil empurrar uma pessoa de noventa anos...
__ E a viúva é mais nova, não é?
__ Sim! 89 só!
__ Tá vendo? Tem mais vigor. Será que não foi ela?
Mas pra quebrar o gelo da névoa fúnebre, nada como as crianças...
Crianças transformam qualquer velório em festa.
Correm, gritam, mostram o que aprenderam na escolinha, falam sobre suas expectativas para o Natal e, no caso de tédio, entram por uma porta e saem por outra freneticamente, animando toda a galera num pique-esconde heterogêneo, que conta inclusive com a participação de atores dos eventos paralelos.
__ Ahn? Quem tá aqui? Meu irmão que morreu e... O quê? A criança? Ah... Acho que ela correu ali pra fora, na direção da avenida e...
Um velório é sempre um reencontro marcante. Não precisa de nenhum extra, DJ ou lembrancinhas. Ele clean já é demasiado.