16 de junho de 2010

Acontece(u)

Ela acordou uma hora depois de dormir com uma vontade louca de cuspir. Louca era ela, mas também a vontade e tudo o que a varria por dentro, que a hipnotizava e prendia diante da constatação bestial de que precisava cuspir. Era simples. Uma cusparadinha e ninguém notaria. Quer dizer... Não. Não era bem assim. Não era exatamente uma cusparadinha. Mas ela tinha que cuspir e pronto. O tamanho certamente não faria diferença alguma diante do fato de cuspir. Cuspir não era comum naquela região do tempo e até os seus 11 anos completos jamais ouvira falar de alguém que o tinha feito. Ela, então, nem pensar. Aliás, mal compreendia como é que seu cérebro pôde conceber tal absurdo como a idéia de botar fora da boca algo de seu interior. Era contrário à natureza e tangenciava o macabro que algo se colocasse não para dentro, como alimento, mas para fora, também como alimento. Algo que alimentava porque era o caminho da maravilhosa sensação da satisfação. A satisfação que só conhecia quem cedia. Aos desejos que ela não compreendia, mas porque os deveria antes de executá-los, já que aquele alguém parecia não fazê-lo? E, ao fim daquele segundo demorado onde várias gerações pareceram contemplá-la, suspensos e absortos naquela ousadia querendo caber num ser desprezível, chocou a todos quando cuspiu bem na cara de seu pai. Vestiu as roupas tremendo e mal pôde fazê-lo completamente antes que ele se recuperasse de tamanha humilhação e viesse tê-la. Ela sabia que todas as divindades a amaldiçoariam depois daquela soberba desobediência, mas levantou a cabeça, escorreu seu braço pálido por entre as mãos robustas de seu senhor, passou pela covardia que chamava mãe e com destreza ainda maior despediu-se da vida, como uma traidora de pés no chão. Foi ter com Deus na neve e na solidão, até que a privação a sublimara, num surto de bondade e compreensão. Anonimamente. Graças. Anonimamente.

Um comentário:

Magno Nunes disse...

Xiiii...

Ela cuspiu...

"Pai nosso que estás no céu..."