Trabalho nove horas por dia. Mais uma de almoço, são dez. Mais uma hora pra ir, uma hora pra voltar, são doze. Dormir oito, são vinte. Duas horas para higiene pessoal e sobram duas. O que se faz em duas horas?
Não dá pra assistir um filme em duas horas. É preciso mais.
Em duas horas eu varro a casa, arrumo os sapatos num canto, rego as plantas, lavo a louça, esquento um bolinho e como um petit gateau. Daí tenho que ir dormir correndo, acordar correndo, tomar banho rápido e ir pro trabalho voando.
Embalada por pensamentos sombrios, fui ter com a promessa de um almoço maravilhoso.
_ Ahhhhhh... que sol gostoso! – falei espreguiçando.
_ É, não é? Esse sol lindo e eu trabalhando o dia inteiro.
_ Pois é! Tá vendo! Esse sol lindo e a gente debaixo daquela luz branca azeda. Horrível! Era pra gente estar chutando a água na beira do mar, Edi!
_ ...É... Chutar a água, deitar no sol, as crianças gritando, caindo de cara, comendo areia... É lindo, não é? Criança fazendo castelinho, comendo areia, os pais nem olhando... Os machos desfilando na praia, com o peito estufadinho para atrair as fêmeas... Muito legal assistir essas coisas...
...Mas legal MESMO é ter uma hora que compense as outras nove.
29 de outubro de 2010
22 de outubro de 2010
Mater
Aquela maternidade parecia um afresco. Uma madona doando leite numa cena urbana. O peito um menino sugava, com a garra de quem se apropria da própria vida, doce, afoita e milagrosamente. Entre a cabeça do pequeno e o ombro da mãe, cabia ainda o maiorzinho, que desfalecia no sono infantil de qualquer-lugar-serve. Estava assim quando projetou suas pupilas nas minhas, negras, vívidas e cheias de vontade de ser mãe, e me acertou a alma o indistinguível contorno preto, denso, no rosto branco marcado. Era como uma chama trepidante e insistente tamborilando dignidade naquele vagão de gente. Ainda por cima, usava as pernas pras sacolas. Mas os filhos? Tinham mãe aqueles filhos dela.
16 de outubro de 2010
Gratuitas
_ O Laerte disse que eu tenho olhos de Capitu. Você acha?
_ Olha, se você tem olhos de Capitu eu não sei. O que eu posso dizer é que durante um bom tempo eu tive dúvidas sobre a sua pessoa.
_ Como assim?
_ Ah... eu achava que você era um lobo em pele de cordeiro.
_ E agora? Agora você sabe que eu sou um cordeiro em pele de cordeiro?
_ Não. Agora eu sei que você é um cordeiro em pele de lobo.
_ !!!
14 de outubro de 2010
Protestas
Aos poucos ela foi descolorindo, perdendo o viço. Mas não era nada radical. Aliás, quase não se percebia. Nem ela mesma percebia o quão amargo era aquele individualismo fundamentalista de que se servia involuntariamente. E foi num dia igual aos demais que não percebeu outra vez, mas a sua própria falta de ideologia lesionou sua honra irremediavelmente.
Os funcionários todos queriam cesta básica. Já haviam tido aquela conversa milhares de vezes na cozinha, na sala de fumar, nos banheiros e pelos cantos das baias, em voz baixa. Então ela decidiu falar, porque não era mesmo de ficar quieta.
_ Chefe, queremos um aumento.
_ Quem queremos?
_ Todos.
_ Todos quem?
_ Nós.
_ Não, eu não quero.
_ Nós, assalariados pra menos.
_ Ah.
_ Mas aceitamos uma cesta básica mensal, além do vale refeição que recebemos.
_ Ah.
_ Então estamos conversados?
_ Sim. Diga a todos que eu neguei.
Arriscado. Ela se gabava de não entrar em brigas assim como de não sair delas.
_ Acho que não vou dizer, não.
_ Não?
_ Não. Diga você.
E ele foi dizer:
_ Florisbela, logo você? Nós a recebemos com tanto carinho nesta casa. Está descontente?
_ Hã? Eu? Não. Eu não. Eu não disse nada...
E foi assim. Um por um. Foi naquela tarde que ela se matou. Sem sangue, sem choro, sem vela. Matou dentro dela aquela que sentia alguma solidariedade pelo povinho mais ou menos. Então a cesta básica a interessava mais do que a todos os outros? Pois bem. Só de raiva não quis mais ser amiga de Orkut daquele pessoal e saiu deletando, de uma tacada só, recepcionista, auxiliar geral, administrador e um ou outro assessor. O cúmulo! O cúmulo! E se trancou dentro dela pra não sair mais.
_ Bom dia, bom dia. Bom dia, chefe.
Os funcionários todos queriam cesta básica. Já haviam tido aquela conversa milhares de vezes na cozinha, na sala de fumar, nos banheiros e pelos cantos das baias, em voz baixa. Então ela decidiu falar, porque não era mesmo de ficar quieta.
_ Chefe, queremos um aumento.
_ Quem queremos?
_ Todos.
_ Todos quem?
_ Nós.
_ Não, eu não quero.
_ Nós, assalariados pra menos.
_ Ah.
_ Mas aceitamos uma cesta básica mensal, além do vale refeição que recebemos.
_ Ah.
_ Então estamos conversados?
_ Sim. Diga a todos que eu neguei.
Arriscado. Ela se gabava de não entrar em brigas assim como de não sair delas.
_ Acho que não vou dizer, não.
_ Não?
_ Não. Diga você.
E ele foi dizer:
_ Florisbela, logo você? Nós a recebemos com tanto carinho nesta casa. Está descontente?
_ Hã? Eu? Não. Eu não. Eu não disse nada...
E foi assim. Um por um. Foi naquela tarde que ela se matou. Sem sangue, sem choro, sem vela. Matou dentro dela aquela que sentia alguma solidariedade pelo povinho mais ou menos. Então a cesta básica a interessava mais do que a todos os outros? Pois bem. Só de raiva não quis mais ser amiga de Orkut daquele pessoal e saiu deletando, de uma tacada só, recepcionista, auxiliar geral, administrador e um ou outro assessor. O cúmulo! O cúmulo! E se trancou dentro dela pra não sair mais.
_ Bom dia, bom dia. Bom dia, chefe.
13 de outubro de 2010
Do vil
Tinha alguma coisa ali. Eu não sabia exatamente o quê, mas fato era que toda a vez que eu passava, fantasmas diziam “olá!”. Desfilavam em mim de poesias a lembranças, bolachas venezuelanas, leite na canequinha laranja, orações, palavras estranhas, outros idiomas e eu. Eu mesma passava num desfiladeiro envergonhando a do presente. Não porque havia algum feito vergonhoso, mas porque eu já não era aquela, simplesmente.
Olhar pro passado é necessário, às vezes. Não sei pra quê, mas sei que é. Reconheço. E evito. Ao mesmo tempo. Ali, no entanto, não havia como evitá-lo, porque não havia como evitar a mim mesma. É como tentar evitar que chova. Não adianta. De repente você está lá, com seu rebento, e chegam os progenitores em procissão, precisando te mostrar do que você é feito. Como se você já não soubesse, inclusive.
Eu era assim, vítima do que havia sido e nem era nada de mais. Uma vida, vivida, com erros e tudo. Nada grave, solene ou soberbo. Soberba, claro. Havia soberba entre os meus pecados, mas havia outros ainda. Indeclaráveis, indeléveis. Fajutos. Perto de tudo do mundo meus pecados eram santos. O mundo explodindo e eu reclusa naquela meia dúzia de leviandades infantis.
Mas era mais. Tinha alguma coisa ali entre aquelas pessoas. Eram ensaios de uma vida adulta o que eu via todos os dias, quando passava pelo mesmo lugar. Meus saltos fazendo barulho na calçada, as meninas me olhando, de cima a baixo. Os meninos também olhavam, só que com mais força e menos persuasão nos trejeitos. Tinham todos o frescor único daquela fase. Guardavam em si a exclusividade insustentável, os bônus e os prós de ser só de si, a falta de compromisso, o elixir não da vida eterna, mas das possibilidades infinitas. Os cabelos esvoaçantes e os sorrisos largos. Daqueles rostos poderiam sair juízes, heróis, artistas, deputados e revendedores da Avon. Eu brincava de adivinhar o que seriam porque já tinha feito isso comigo mesma umas cem milhões de vezes e errara em todas elas. Eu era meu próprio rascunho e eles também, flexíveis pedaços de gente sendo moldados pelo sol do meio-dia, na hora da saída do colegial. Estavam treinando para a vida e a vida treinando neles o que havia de ser.
Mas tinha ali alguma coisa. Eu passando por um rosto, um rosto e outro. Rascunhos. Até que descobri que o que havia entre eles era um texto.
Olhar pro passado é necessário, às vezes. Não sei pra quê, mas sei que é. Reconheço. E evito. Ao mesmo tempo. Ali, no entanto, não havia como evitá-lo, porque não havia como evitar a mim mesma. É como tentar evitar que chova. Não adianta. De repente você está lá, com seu rebento, e chegam os progenitores em procissão, precisando te mostrar do que você é feito. Como se você já não soubesse, inclusive.
Eu era assim, vítima do que havia sido e nem era nada de mais. Uma vida, vivida, com erros e tudo. Nada grave, solene ou soberbo. Soberba, claro. Havia soberba entre os meus pecados, mas havia outros ainda. Indeclaráveis, indeléveis. Fajutos. Perto de tudo do mundo meus pecados eram santos. O mundo explodindo e eu reclusa naquela meia dúzia de leviandades infantis.
Mas era mais. Tinha alguma coisa ali entre aquelas pessoas. Eram ensaios de uma vida adulta o que eu via todos os dias, quando passava pelo mesmo lugar. Meus saltos fazendo barulho na calçada, as meninas me olhando, de cima a baixo. Os meninos também olhavam, só que com mais força e menos persuasão nos trejeitos. Tinham todos o frescor único daquela fase. Guardavam em si a exclusividade insustentável, os bônus e os prós de ser só de si, a falta de compromisso, o elixir não da vida eterna, mas das possibilidades infinitas. Os cabelos esvoaçantes e os sorrisos largos. Daqueles rostos poderiam sair juízes, heróis, artistas, deputados e revendedores da Avon. Eu brincava de adivinhar o que seriam porque já tinha feito isso comigo mesma umas cem milhões de vezes e errara em todas elas. Eu era meu próprio rascunho e eles também, flexíveis pedaços de gente sendo moldados pelo sol do meio-dia, na hora da saída do colegial. Estavam treinando para a vida e a vida treinando neles o que havia de ser.
Mas tinha ali alguma coisa. Eu passando por um rosto, um rosto e outro. Rascunhos. Até que descobri que o que havia entre eles era um texto.
Assinar:
Postagens (Atom)