"Quando eu tinha uns três ou quatro anos, lembro de
estar sentado no chão com meu álbum de figurinhas. Era um álbum da Corrida
Maluca, o desenho, sabe? Eu tava colando figurinhas. De repente, me
irritei, não sei por quê. Acho que estava faltando figurinhas, não sei. Então,
num ataque de fúria, eu comecei a destruir o álbum. Rasguei, picotei, parecia
um animal. Arranquei todas as páginas com força. Daí parei. Olhei ao redor para
ver se alguém estava me olhando, se eu seria castigado. E não. Ninguém estava
perto. Mas eu olhei pro álbum e percebi que a maldade que eu tinha feito foi
comigo mesmo. Daí eu chorei."
9 de dezembro de 2013
17 de outubro de 2013
14 de outubro de 2013
Efeito fita
Cortou-me o coração sabê-la sempre tão sentada, o rosto triste ao pé da escada, ajeitando o laço do presente entre as mãos.
Como muitos romances de começo, entreteve o caminho de um e outro até que deu no horizonte. Sete anos levou o prenúncio e há um a vida estatelava na parede da frente, tanto parede que nem via janela ou porta, de novo e de novo voltando praquele que não a queria.
Em frangalhos a menina tornava e entornava de todo o coração a simpatia pelo moço sem noção, que declarava sem cerimônia ou emoção amor por uma recém-aparecida.
Em ocasião do aniversário, sua ex-menina lhe veio com dois presentes. Uma armação de fofoca com desejos de insucesso e um pacotinho, com laço de fita na frente, que ajeitava cuidadosamente entre as mãos, tão sentada, o rosto triste ao pé da escada.
Cortou-me o coração.
9 de outubro de 2013
Bandidos
Assaltante de joalheria é “bandido”.
Roubou, é “bandido”.
É presidiário, é “bandido”.
Justiça condenou (condenou mesmo ou vai investigar?), é “bandido”.
Corrupto não. Condenado por mensalão é “acusado”. No máximo é chamado de “condenado do caso mensalão” mesmo. Bandido é outra coisa. Bandido é o que mata ou poderia matar com as próprias mãos, diretamente, sem intermédio de burocracia. Matar por tabela desviando verba de hospital e merenda de criancinha é ooooutro tipo de “inconstitucionalidade”. É caso de...
...Sei lá!
Auto-alto-padrão de televisão.
20 de setembro de 2013
Dilema
Como criar uma obra de arte depois de Deus? O que há para ser feito depois da água, do sol, das articulações da mão, da pérola, da orquídea?
Meu cabelo pegou fogo uma manhã e nele se via um arco-íris em cada fio. Pensei “meu Deus, eu não aguento tanta arte!”
Pareceu que a obra inteira, o mundo inteiro estava acabado e eu sobrei no meio a exemplo de imperfeição.
Não. Mas no meio não que é muita coisa. Sobrei no canto de um mundaréu, na margem do Caminho de Leite. Ou menos. Fiquei pra bicho na ponta do cabelo ensolarado, guardando fios de arco-íris.
3 de setembro de 2013
Se velório, não agite
É uma situação peculiar. Pessoas morrem todos os dias, mas não da sua família. Então, a ocasião é mesmo um caso a ser desvendado. E em grupo. Parentes chegam de todos os lugares. Muitos, inclusive, descobrem seu parentesco ali mesmo e aproveitam para rascunhar a árvore genealógica atrás do ticket do estacionamento:
__ Olha, Evandro, esse aqui é o Nivaldo, esposo da Armênia, filha do Gerônimo e da Claudete, lembra da Claudete?, tia da Anastácia e da Carmela, a que teve o Reginaldo depois que se separou do Moacir e se casou com...
__ ...Tá. Começa de novo que agora eu vou anotando aqui. Nivaldo... esposo-Armênia-filha-Gerônimo-Claudete-que... Ah! Não foi a Claudete do Cícero?, que traiu o tio quando... nossa!, eu me lembro... foi um escândalo...
Lembranças. O importante é ter recordações, mesmo que só de fatos que não se conectem com rostos.
__ Sinto muito...
__ Oi... eu também sinto muito...
__ ...
__ Quem é esse mesmo que a gente cumprimentou agora?
__ O filho do morto.
__ Ahn...
Mas meus personagens favoritos são os francos, os que riem deslavadamente, aproveitam a oportunidade para um encontro informal e uma roda de conversa descontraída ao lado do caixão. Comentam a novela, contam aquela do papagaio, falam do cachorro que, espertíssimo, corre pra cozinha ao apito do microondas, a vida conjugal da vizinha, algum problema de saúde que eventualmente lembre o estado do recém-falecido e outras especulações felizes sobre a grande graça de estar ali.
Grávidas, então, viram o centro das atenções. Celebrações efusivas à nova vida contagiam o ambiente e merecem as flores das coroas e as velas pelo anjinho que virá. Alguém, mais emotivo, quebra o clima de confraternização com um choro copioso, inconveniente.
__ Nossa, gente. Quem é esse, fazendo esse escândalo todo?
__ O filho do morto. Já falei!
__ Ah, é! Tinha esquecido!
Os mais revoltosos procuram culpados. A viúva é sempre a primeira suspeita e não demora para começar a coçar a orelha esquerda. Seja como for, o mistério precisa ser esclarecido, na esperança de que o quadro seja revertido e o defunto se levante. Um pequeno e seleto grupo, mais consciencioso, se dedica a examinar os papéis, usando a tampa do caixão para separar os documentos e avaliar com acuidade:
__ Deixa eu te mostrar o atestado de óbito. Olha aqui. “Causa mortis: infecção generalizada”.
__ Mas foi feita autópsia?
__ Sim, sim. Ele morreu no hospital, mas fizeram. Até demoraram para avisar. Olha. Duas da manhã. Mas só ligaram às 9h. Deve ser por isso.
__ Mas a infecção por causa da perna, ainda?
__ Deve ter sido quando ele tirou a prótese.
__ E se não foi?
__ Deve ter sido.
__ Foi depois da queda.
__ É. Foi depois da queda.
__ Então foi a queda! Essa queda aí tá mal explicada... E se ele foi empurrado?
__ É... é fácil empurrar uma pessoa de noventa anos...
__ E a viúva é mais nova, não é?
__ Sim! 89 só!
__ Tá vendo? Tem mais vigor. Será que não foi ela?
Mas pra quebrar o gelo da névoa fúnebre, nada como as crianças...
Crianças transformam qualquer velório em festa. Correm, gritam, mostram o que aprenderam na escolinha, falam sobre suas expectativas para o Natal e, no caso de tédio, entram por uma porta e saem por outra freneticamente, animando toda a galera num pique-esconde heterogêneo, que conta inclusive com a participação de atores dos eventos paralelos.
__ Ahn? Quem tá aqui? Meu irmão que morreu e... O quê? A criança? Ah... Acho que ela correu ali pra fora, na direção da avenida e...
Um velório é sempre um reencontro marcante. Não precisa de nenhum extra, DJ ou lembrancinhas. Ele clean já é demasiado.
30 de agosto de 2013
17 de agosto de 2013
Da gaveta
Antonio Carlos Malheiros é Desembargador e Coordenador do departamento da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mas faz ainda hoje o que fazia na adolescência. Aos 13 anos começou em projetos de reconhecimento de favelas. Esta é, aliás, sua recomendação aos novos magistrados: “Para que entendam de justiça, eles têm que estudar no grande livro da vida. Vão encontrá-lo na poeira das ruas, no chão enlameado das favelas, nos esgotos dos cortiços, no pátio da Fundação Casa, nas celas do nosso falido sistema carcerário e na solidão dos hospitais. Caminhando, sentindo o gosto da lágrima das pessoas, eles poderão desenvolver um bom trabalho.”
Qual é sua opinião sobre a internação compulsória?
Não dá resultado. Internação compulsória é um pronto socorro. No momento em que a pessoa está morrendo, com tuberculose, aids, sífilis, extremamente magra, fumou todas as pedras possíveis de crack, o médico fala “olha, interna”. [...] Ou seja, pra você não morrer agora estou te internando na marra. Mas vai ficar quanto? 15 dias, um mês, dois meses? Muito complicado. Até porque, contra a vontade ninguém vai deixar de usar droga. É preciso querer. Pra pessoa querer tem que ser feito um trabalho, talvez em meio aberto, para em algum momento a própria pessoa falar “péra, me interna, porque agora eu entendi, eu vou tentar mudar, eu quero”. Daí começa a surtir algum efeito.
Mas o argumento do Estado, das políticas públicas que alimentam a ideia de que a internação compulsória pode resultar, é justamente de que as pessoas que frequentam a Crackolândia já estão em situação emergencial. Na sua experiência, elas estão?
Nós encontramos alguns que sim. Outros tantos não. Para esses outros vale muito mais tentar um convencimento. [...] Mas a internação compulsória é o que a sociedade quer, porque não importa se é bom, se é ruim. “O que eu não quero mais é sair da Sala São Paulo, depois de assistir aquele belo concerto, maravilhoso, e topar com essa multidão de zumbis na minha frente. Ou seja, se você desaparecer com eles amarrando uma pedra e jogando no fundo do mar, tá ótimo. Se você quiser levar pra sua casa, tá ótimo também. O que eu não quero é encontrar mais esse lixo humano na minha frente”. Assim pensa 90% da população, esses mesmos 90% que querem a redução da maioridade penal e que não ligam a mínima pra saber porque aquele cara se tornou tão violento. [...] Então, a movimentação, se a gente deixar, é sempre higienista.
[...]
Muitos projetos, embora sejam bem executados, são pontuais. Não há continuidade. A criança é acolhida, mas quando se torna adolescente já não tem mais acolhimento, ou completa 18 anos e...
Exatamente. Você tem toda a razão. O tal do day after. O dia seguinte é o que nos mata. A gente até tem planos bacanas. Pega daqui, tira dali, põe pra lá. E o day after? [...] Se a gente não conseguir fazer isso, é fácil: “Eu vou voltar pra rua e vou acender um cachimbinho. Até porque, esse cachimbinho dá um prazer extraordinário e anestesia essa grande dor de mágoa, de frustração, de ódio.”
As iniciativas contra as drogas falam pouco dessa questão do prazer. As drogas têm apelo e isso não é discutido.
Com certeza. A droga dá um prazer fantástico. Mas qual é o preço dessa viagem? Pode ser a sua vida. Mas enfim, naquele momento que eu tô com fome, lembrando da minha mulher que partiu porque não me aguentou mais, dos meus filhos que foram com ela, quando estou sozinho, perdi casa, perdi tudo, perdi emprego, “ah... eu vou acender um cachimbinho aqui que vai me melhorar”. Se eu estivesse numa condição de rua, provavelmente estaria fumando crack também.
O que falta para as nossas políticas públicas serem mais articuladas? Qual é o problema? É a burocracia, são os governos locais, é o governo federal?
Falta de vontade política e de coragem, de dar a cara pra bater, de falar “olha, nós não temos vagas, vamos ter que destinar recursos pra isso, vamos tentar”. Falta humildade na fala. Perde voto quem for sincero. Mas falta alguém dizer “não tem importância. Eu vou começar a fazer uma política diferente.”
16 de julho de 2013
5 de julho de 2013
Armadilhas
Có-có-córóóóóó!!!
Có-có-córóóóóó!!!
Có-có-córóóóóó!!!
Ecoou um galo dentro do quarto urbano. A medida que ficava progressivamente mais alto na madrugada seca, o esguelamento passou a inviabilizar os sonhos do pastor, que se levantou sonâmbulo na direção do bicho. Apertou um botão e a tela explodiu clara nos olhos semicerrados:
98 + 17 = ?
Tentou pensar rápido com aquele som de galo inundando a cabeça. Outra:
7 x 8 = ?
Suspiro. E o galo berrava. A última:
64 ÷ 5 = ?
Deitou. Voltou a gozar da paz e do silêncio celestial criado pelo espírito de Deus que pairava sobre as águas no princípio do mundo, antes da invenção dos anjos e dos santos que...
Có-có-córóóóóó!!!
Esgotaram-se os dez minutos de devaneio. Abriu os olhos e encontrou o galo na mão. Tentou desativar. Não pôde. Tentou a opção “soneca”. Sem chance. Na tela o contador:
DÊ 15 PASSOS
O galo aumentando. Estava frio. Resolveu trapacear. Chacoalhou o celular na mão, da cama mesmo, como quem caminha.
1... 2... 3... 4... 5... 6... 7... 8... 9...
FRAUDE DETECTADA
COMECE DE NOVO
1... 2... 3... ... 11... 12...
FRAUDE DETECTADA
COMECE DE NOVO
Quem entrasse no quarto flagraria o pastor transtornado, sacudindo um celular no ar, com os cabelos desgrenhados, em sua cama quentinha, ao som de um galo fantasma a plenos pulmões antes do amanhecer.
Conseguiu, por fim, calar o galo e conquistou mais dez minutos do deleite sagrado.
Mais dez minutos do deleite sagrado.
Mais dez.
Chegou atrasado na empresa novamente aquele dia. Foi honesto:
__ É que o despertador não funcionou.
10 de junho de 2013
4 de maio de 2013
18 de abril de 2013
Existe sim
Fui em direção à porta. O guarda também:
__ Ah... está trancada?
__ Não. Mas a senhorita acha que não existe mais
cavalheirismo? – e abriu pra mim.
16 de abril de 2013
Do difícil
Já faz um tempo, fui almoçar reparando nos anúncios do caminho: park,
nail care, hair stylist, drinks. No menu do restaurante, duas opções de
omelete. Chamei o garçom:
__ Um omelete de queijo, por favor. E feijão.
__ Um omelete de queijo?
__ Sim.
__ Só de queijo?
__ Sim.
__ Mais nada? – com expressão de incredulidade.
__ Não.
__ Espera. Ô fulano! Olha, ela pediu um omelete só com queijo e quer
trocar o resto por feijão!
__ Não, não. Não foi isso que eu disse. Eu quero o feijão à parte, uma
guarnição. E um omelete simples.
__ Só com queijo! Sem mais nada!
__ Sim. Só com queijo.
__ Nem salsinha! – gritando pro outro.
__ Pode ter salsinha.
__ Ah! Então queijo, presunto, salsinha...
Peguei o menu pra apontar:
__ Vamos lá: existem dois tipos de omelete aqui. O Completo e o Misto.
Eu quero o misto. Só que sem presunto. Feijão à parte.
__ Ah...
Esses dias, o cavalheiro lutava pelo nosso desjejum.
__ Um queijo quente, por favor.
__ Prato?
__ Um queijo quente.
__ Só tem prato.
__ Sim, mas é quente?
__ O queijo é prato.
__ Tá. Mas pode ser quente?
__ Sim. Quente.
__ Então tá.
__ Então o queijo prato quente?
__ Sim.
E tentou o café:
__ E um café com leite.
__ Café?
__ Sim. Com leite.
__ Com leite?
__ Isso.
__ Café com leite?
__ Sim.
__ Médio?
__ Isso.
__ Ou pequeno?
__ Médio.
__ Café com leite?
__ Sim.
__ Médio, né?
__ Isso.
Imagina se a gente fosse pro drink:
__ Um dry martini, por favor.
__ Martini?
(((suspiro)))
A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de
percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéia em comum. O que quer dizer
“ter coisas em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem
precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em
comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso
afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me
o sal”. Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto
totalmente abstrato, sobre o qual não posso concordar, mas entendo tudo o que
dizem.
Gilles Deleuze em
entrevista para Claire Parnet, em o Abecedário de Gilles Deleuze.
14 de abril de 2013
12 de abril de 2013
Vozes da civilização
__ Eu achei... um real no chão do seu quarto. Daí eu peguei.
Achado não é roubado!
11 de abril de 2013
5 de abril de 2013
Aprendi a ser menina
Mas ninguém me ensinou a gostar de azul. Posso garantir que nasci gostando, porque me lembro de quando era bem pequena, na escolinha. A professora distribuía latas com lápis colorido nas mesinhas. Cada mesa tinha um grupo de três ou quatro crianças e eu seguia meu ritual: examinava a latinha. Se tivesse aquele tom de azul manto, eu pegava e começava a pintar. Não importava qual era o desenho. Casa, árvore, pessoas, panquecas ou chinchilas. Tudo virava uma desordenada massa azul. Mas e quando aquele tom específico de azul não vinha na latinha do meu grupo? Alguém tinha que fazer alguma coisa!
Descia da cadeeeira... e ia passando por todas as mesas, olhando a latinha alheia. Encontrando meu lápis, simplesmente pegava sem pedir permissão e voltava para o meu desenho. Lembro bem a sensação indistinta e boa de olhar aquele azul. Eu não me perguntava por que, simplesmente sentia o prazer-azul e o procurava porque queria. Até que um dia, ao notar minha busca regular, uma criança comentou em voz alta: “lá vem a Camila roubar nosso azul! Você não devia fazer isso! Azul é coisa de menino!”.
A minha reação? Exatamente zero. Aquilo simplesmente não fez o menor sentido pra mim. Ouvi, mas não entendi. Segui minha trajetória até a lata alheia e peguei o lápis azul. O assunto nem sequer ecoou no meu coração. “Coisa de menino”? Sabe-se lá o que é “coisa” e o que é “menino”. Mas tempos depois, entendi naquela mesma sala o que vinha ignorando.
Era dia das mães e cada um fez um cartãozinho. Depois que todo mundo acabou, a professora chamou um por um lá na frente pra passar batom e dar um beijo no cartão pra mamãe. Antes de mim foi um menino. Ele disse pra professora que não queria passar batom e ela explicou que ia ser pra mamãe, bem rapidinho, e em seguida ele tiraria. Senti o climão. O colega estava desconfortável, mas aceitou. Alguém da plateia gritou: “a-há! ele é menina, ele é menina!”. O menino ficou bravo. A professora lutou para ter a atenção dele focada no cartão. Ele beijou o papel, saiu correndo e foi pro banheiro lavar. A professora foi atrás pra ajudar.
Daí chegou a minha vez. Passei o batom numa boa, beijei o papel e segui o procedimento do colega: corri pro banheiro lavar. Até que alguém riu de mim: “a-há! você não precisa tirar, sua boba! você é menina, pode usar batom!”.
Foi um baque.
Eu sou menina??? Como assim eu sou menina??? É por isso que eu posso usar batom??? Menino não pode??? Então é por isso que falaram do lápis azul???
Rolou uma confusão mental ali na hora. O azul, pela primeira vez, tinha significado. A partir daí foi uma vasta série de aprendizados sobre como ser a menina que eu nasci sendo. Algumas vezes era fácil. Eu adorava usar vestido. Outras vezes era mais difícil. Os brincos faziam coçar as orelhas. Quem me acha feminina hoje vê aí uma coincidência. Coincidiu de eu normalmente produzir e gostar dos efeitos notadamente esperados do meu gênero, embora Marilyn Monroe tenha sido muuuito melhor nisso do que eu.
Há alguns anos, conheci uma adolescente que me contou que um dia, ainda criança, durante as atividades de desenho e pintura, respondeu uma pergunta com outra pergunta:
__ Me empresta o lápis cor da pele?
__ Cor da pele de quem?
O lápis “cor da pele”, róseo e claro, deixava a Simone confusa. Se ela chamasse o lápis marrom de “cor da pele” também, será que os outros entenderiam qual ela queria?
Os fatos narrados se deram mais ou menos nessa época aqui. Na ocasião da foto me sentia particularmente impelida a demonstrar parental afeto pelo bicho de pelúcia cafuzo, dias antes de prender as unhas do meu gato na gaveta. Reparem vocês que nasci tailandesa. Só fui me naturalizar brasileira quando... Bem, isso ainda não é muito natural pra mim.
Assinar:
Postagens (Atom)