24 de março de 2013

O bom do cortiço


O bom do cortiço era a impossibilidade do anonimato. Cada qual empedernido se vinha dar as novas de sua opinião. Não tinha necessidade pedir para ouvir ou para falar. Não precisava dar oportunidade que desfilavam claras e altas insatisfações sobre tudo o que se pode pensar mal e falar ainda pior. De públicos e privados saltavam para íntimos, muito íntimos e inconfessáveis assuntos de si mesmo até quando eram de outros. O outro era o si mesmo, a vida alheia incorporava na qualidade do coletivo adjunto insubordinável, havia ali o parlamento improvisório discutindo a legalidade da lei:

__ Pegou.
__ Pegou???
__ Pegou!
__ A vizinha???
__ É. Mas eu tava falando da mulher.
__ O quê??? Pegou???
__ Pegou.
__ O cabra com a mão na vizinha???
__ Foi.
__ E agora?
__ Separar não pode.
__ Pode desquitar.
__ Mas não deve.
__ Mas ficar casada não vai não.
__ Se separar, meus filhos não brincam mais com os filhos dela.

A ética do grupo, do bando, a serviço do contrabando, do você que não se meta, aqui resolvo eu, tá olhando o quê e me deixa que a vida é minha.
Enquanto crescendo, tinha lá a lista dos bons, dos melhores, dos piores, dos altamente evitáveis e dos proibidos, que normalmente jogavam sinuca todos juntos de sábado no boteco onde ia avisar o pai que o almoço estava pronto.
Era ritual que todo o domingo pediam perdão pela semana inteira e usavam a semana inteira para os mesmos propósitos pelo que pediam perdão aos domingos.
Crescido, resolveu dar um basta e deu graças a si de se livrar do peso da intromissão alheia. Trocou a moralidade do decente socialmente regulada pela indiferença crônica tacitamente estabelecida.
Anônimo-a-no-ni-mo-a-no-ní-mo-ânimo!, repetia sozinho da janela diluída na paisagem, ansiando pela deformidade da crença e sua desfiguração a galope no você que se meta, resolve você e não me deixa que minha vida é sua.

3 comentários:

Magno Nunes disse...

Mas péra... PEGOU OU NÃO PEGOU?

Felipe Teles disse...

Fico realmente pensando.
Porque a felicidade alheia incomoda?
Seria um problema do ser humano?
Ou criar o erro alheio ou a falta alheia acalma uma necessidade própria?

Já fui jogar sinuca junto no boteco mas não ia aos domingos pedir a tal perdão.
Não sei aonde me desencaixei disso tudo ai.
Mas quando desencaixa... será que volta? Ou vai para onde?

Joey Marrie disse...

É que pra se viver em sociedade é obrigatório um rótulo, né? E rótulos, qualquer um pode ler... quando as letras são grandes então...