Mas ninguém me ensinou a gostar de azul. Posso garantir que nasci gostando, porque me lembro de quando era bem pequena, na escolinha. A professora distribuía latas com lápis colorido nas mesinhas. Cada mesa tinha um grupo de três ou quatro crianças e eu seguia meu ritual: examinava a latinha. Se tivesse aquele tom de azul manto, eu pegava e começava a pintar. Não importava qual era o desenho. Casa, árvore, pessoas, panquecas ou chinchilas. Tudo virava uma desordenada massa azul. Mas e quando aquele tom específico de azul não vinha na latinha do meu grupo? Alguém tinha que fazer alguma coisa!
Descia da cadeeeira... e ia passando por todas as mesas, olhando a latinha alheia. Encontrando meu lápis, simplesmente pegava sem pedir permissão e voltava para o meu desenho. Lembro bem a sensação indistinta e boa de olhar aquele azul. Eu não me perguntava por que, simplesmente sentia o prazer-azul e o procurava porque queria. Até que um dia, ao notar minha busca regular, uma criança comentou em voz alta: “lá vem a Camila roubar nosso azul! Você não devia fazer isso! Azul é coisa de menino!”.
A minha reação? Exatamente zero. Aquilo simplesmente não fez o menor sentido pra mim. Ouvi, mas não entendi. Segui minha trajetória até a lata alheia e peguei o lápis azul. O assunto nem sequer ecoou no meu coração. “Coisa de menino”? Sabe-se lá o que é “coisa” e o que é “menino”. Mas tempos depois, entendi naquela mesma sala o que vinha ignorando.
Era dia das mães e cada um fez um cartãozinho. Depois que todo mundo acabou, a professora chamou um por um lá na frente pra passar batom e dar um beijo no cartão pra mamãe. Antes de mim foi um menino. Ele disse pra professora que não queria passar batom e ela explicou que ia ser pra mamãe, bem rapidinho, e em seguida ele tiraria. Senti o climão. O colega estava desconfortável, mas aceitou. Alguém da plateia gritou: “a-há! ele é menina, ele é menina!”. O menino ficou bravo. A professora lutou para ter a atenção dele focada no cartão. Ele beijou o papel, saiu correndo e foi pro banheiro lavar. A professora foi atrás pra ajudar.
Daí chegou a minha vez. Passei o batom numa boa, beijei o papel e segui o procedimento do colega: corri pro banheiro lavar. Até que alguém riu de mim: “a-há! você não precisa tirar, sua boba! você é menina, pode usar batom!”.
Foi um baque.
Eu sou menina??? Como assim eu sou menina??? É por isso que eu posso usar batom??? Menino não pode??? Então é por isso que falaram do lápis azul???
Rolou uma confusão mental ali na hora. O azul, pela primeira vez, tinha significado. A partir daí foi uma vasta série de aprendizados sobre como ser a menina que eu nasci sendo. Algumas vezes era fácil. Eu adorava usar vestido. Outras vezes era mais difícil. Os brincos faziam coçar as orelhas. Quem me acha feminina hoje vê aí uma coincidência. Coincidiu de eu normalmente produzir e gostar dos efeitos notadamente esperados do meu gênero, embora Marilyn Monroe tenha sido muuuito melhor nisso do que eu.
Há alguns anos, conheci uma adolescente que me contou que um dia, ainda criança, durante as atividades de desenho e pintura, respondeu uma pergunta com outra pergunta:
__ Me empresta o lápis cor da pele?
__ Cor da pele de quem?
O lápis “cor da pele”, róseo e claro, deixava a Simone confusa. Se ela chamasse o lápis marrom de “cor da pele” também, será que os outros entenderiam qual ela queria?
Os fatos narrados se deram mais ou menos nessa época aqui. Na ocasião da foto me sentia particularmente impelida a demonstrar parental afeto pelo bicho de pelúcia cafuzo, dias antes de prender as unhas do meu gato na gaveta. Reparem vocês que nasci tailandesa. Só fui me naturalizar brasileira quando... Bem, isso ainda não é muito natural pra mim.
5 comentários:
Fico imaginando quantos outros poema infantis Cafuso não escutou ou ainda assistiu de camarote.
Te conto só aqui entre nos que quando crianca e ate oa 25 anos minha cor preferida era(é) o vermelho, mas...
Mas eu não me recordo do porque.
Mas eu sempre duvidei de cor de menino e cor de menina.
Acho mesmo que são todos bluelovers enrrustidos.
Aposto que os pais desses meninos eram sempre chamados na diretoria pelo mesmo motivo...
" Olha, ele sempre usa lapis azul, mas pinta de azul coisas como maçã, coração, catchup... mas fiquem tranquilos, ele nunca usou o vermelho!"
"Uff..."
Isso tá com cheiro de "Consulado de San Marino"...
Mas é interessante quando a crEança toma essa consciência de que é menino e menina...
É um divisor de águas!
E é legal vc assumir sua nacionalidade tailandesa, agora podemos ligar na Polícia Federal e ver se seus papéis estão em dia!
TEJE PRESA!
Porque nem todo instinto escapa às regras da sociedade... digo, da natureza.
Que graça de texto!
ri muito!!! adorei!!
todo mundo tem uma história bizarra e traumática relacionada a lápis, né não?
beijo no coração.
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