5 de julho de 2013

Armadilhas


Có-có-córóóóóó!!! 
Có-có-córóóóóó!!! 
Có-có-córóóóóó!!! 

Ecoou um galo dentro do quarto urbano. A medida que ficava progressivamente mais alto na madrugada seca, o esguelamento passou a inviabilizar os sonhos do pastor, que se levantou sonâmbulo na direção do bicho. Apertou um botão e a tela explodiu clara nos olhos semicerrados: 

98 + 17 = ? 

Tentou pensar rápido com aquele som de galo inundando a cabeça. Outra: 

7 x 8 = ? 

Suspiro. E o galo berrava. A última: 

64 ÷ 5 = ? 

Deitou. Voltou a gozar da paz e do silêncio celestial criado pelo espírito de Deus que pairava sobre as águas no princípio do mundo, antes da invenção dos anjos e dos santos que... 

Có-có-córóóóóó!!! 

Esgotaram-se os dez minutos de devaneio. Abriu os olhos e encontrou o galo na mão. Tentou desativar. Não pôde. Tentou a opção “soneca”. Sem chance. Na tela o contador: 

DÊ 15 PASSOS 

O galo aumentando. Estava frio. Resolveu trapacear. Chacoalhou o celular na mão, da cama mesmo, como quem caminha. 

1... 2... 3... 4... 5... 6... 7... 8... 9... 

FRAUDE DETECTADA 
COMECE DE NOVO 

1... 2... 3... ... 11... 12... 

FRAUDE DETECTADA 
COMECE DE NOVO 

Quem entrasse no quarto flagraria o pastor transtornado, sacudindo um celular no ar, com os cabelos desgrenhados, em sua cama quentinha, ao som de um galo fantasma a plenos pulmões antes do amanhecer. 

Conseguiu, por fim, calar o galo e conquistou mais dez minutos do deleite sagrado. 
Mais dez minutos do deleite sagrado. 
Mais dez. 
Chegou atrasado na empresa novamente aquele dia. Foi honesto: 

__ É que o despertador não funcionou.

4 comentários:

Felipe Teles disse...

hauhauhauhauhauha...
Foi exatamente assim!!!

Aliás.. está bem melhor do que realmente foi viu!!!

:)

Baco disse...

Um texto muito criativo, trabalhando muito bem a Figura, que beira a um galo “ave” e no outro momento se dissipa ao se revelar em uma frase se tratar de um celular, na minha interpretação e sabe-se que interpretação é particular, há uma luta do cotidiano pavoroso e o cotidiano poético, o que quer dizer, que ao se negar acordar e mesmo assim acordando, o sujeito vítima do alarme que ele mesmo programou, propõe que sabe do seu compromisso (cotidiano pavoroso) porém subtrai-se dele a fim de curtir o silencio de 10 minutos (cotidiano poético), de certa forma até o frio, e quem ganha essa luta é quem é o continuo da criação, o trabalho, as obrigações, a vida em si que lhe deu o abono mas cobrara-lhe a falta.

Baco disse...

Só não ficou muito claro pra mim, porque a figura de um pastor pra ilustrar tais causos?

Magno Nunes disse...

Ééééé os galos de hoje são assim, num funcionam direito.

Antigamente eles num tinham essa de mais 10 minutos, o meio termo que ferra tudo.

Dizem que de grão em grão a galinha enche o papo, de 10 em 10 o patrão enche o saco ahahaha

Ai que vontade de comer milho... Igualqnem o da USJT, vou ali pegar e já volto...