“Ah… que bonitinha!”, pensei comigo. Baixinha, fofinha, cabelo de algodão doce. Chegou ao ponto de ônibus com passos curtinhos e sentou-se ereta. Cara de velhinha limpinha, sabe? Que toma banho sozinha, que come direitinho, que obedece a filha. Tinha as unhas feitas, um coque impecável e decência. Gosto muito de velhinhas que se comportam como velhinhas. É que não havia pombos ao redor, mas tenho certeza que ela jogaria pipoca pra eles e...
_ Cccc... Ccccc... rrrrrr... rrrrrrrrrrrrrrr... ptú!
Argh!
30 de junho de 2011
27 de junho de 2011
Herdeiro
Brotado do nordeste. Mãe briga com o pai e vai embora com o filho pra casa de parentes em cidade grande. Mas ele não se sentia um clichê. Era só alguém que não queria conhecer o pai, que não tinha muito contato com a mãe, apesar de morar com ela, e que não se dava bem com o irmão – filho de um outro ainda. Foi clichê quando o pai lhe viu as fotos das mãos de parentes e achou que se pareciam muito. Foi clichê quando disseram que o pai queria muito lhe ver, já adulto. Uns diziam que era a mãe quem não queria. Outros, que o pai não fez questão. Seria típico se as duas coisas fossem verdade, mas ele não soube bem, então deixou que passasse a oportunidade. Um belo dia lhe contaram que o pai sofrera um acidente. Em seguida, que estava muito mal. Disseram ainda que teve súbita melhora. Depois, que falecera. A mãe, de perto, nem se moveu para consolá-lo do amargo da culpa por se ter negado a ver a raiz de seus traços bem feitos, moreno, leve. Chorou sozinho, sem pai por força da morte, sem mãe por força da vida. Talvez fosse clichê do Piauí mãe não abraçar filho nem quando morre o pai.
21 de junho de 2011
de Carli
No dia de alçar vôo, as beatas tudo apareceram lá. Tinha gente saída até de dentro da TV pra ver o padre ir-se embora, levantado por mil balões de gás coloridos. Tempo de fé aquele abril, quando recorde e pastoral se juntavam na motivação do religioso. Eu mesma não fui naquele dia. Nem em outro, a bem da verdade. Eu não o conhecia, mas posso imaginar seu desespero progressivo até o fim trágico, previsível. Posso entender que não havia sequer um’alma baiana para alertá-lo de que os orixás alguma coisa, os búzios diziam, as cartas falavam. Mas eu, de intuição falha e nenhuma técnica na arte da predição, era bem capaz de dizer que atravessar o País suspenso por bexigas era mais do que um ato de ousadia e confiança no Senhor. Era uma idéia suicida. Surpreende-me, no entanto, lembrar a utopia desatinada. E há algo que agrada. Talvez porque seja humano cultivar o fantasioso. Talvez porque eu tenha cá minhas confianças quiméricas. Talvez ainda... porque seja da vida flertar com a morte e, no fundo, eu entenda.
“A polícia diz que os restos mortais encontrados em Maricá, Litoral Fluminense, no início de julho são realmente do padre Adelir de Carli, desaparecido desde o dia 20 de abril (2008), quando decolou com balões de gás no Paraná. Suspenso por cerca de mil balões, Carli pretendia ficar 20 horas no ar e bater o recorde neste tipo de vôo. Além do novo índice, o padre dizia ainda que iria divulgar a Pastoral Rodoviária, de apoio a caminhoneiros. Mesmo com o céu nublado e pancadas de chuva, o religioso manteve o vôo.”
Turning tables
Essa vez foi como todas as outras. Piripaque, jejum, insônia, experiência de quase morte. Depois da desintoxicação, um ritual singelo. Entre os artigos de escritório da prateleira encontrei a caixa sob medida para a sua meia-dúzia-de-coisas. Asséptica, lilás, que é a cor da transmutação no mundo espiritual. Não esperei, claro, que você notasse esse cuidado, além de ter ajeitado ordenadamente seus vídeos, livros e a escova de dente no topo da pilha, como cereja do bolo ou king-kong na ponta do arranha-céu. Coloquei a escova de ladinho, pra não cair. Daí inverti com a sua foto de criança, enrosquei no fio do seu HD. Achei ali um canto e só faltava a etiqueta, com seu nome implicitando algo terrível: aqui jaz um equívoco a dois.
E nada mais se disse a respeito.
E nada mais se disse a respeito.
20 de junho de 2011
Extracurricular
Foi uma afirmação ingênua, de menino amarelo na sexta série. Muito Jornal Nacional na cabeça deu naquilo ali, uma espécie de patologia moral:
_ Mas, professor... e nas favelas?
_ Quê que tem nas favelas?
_ Ah... onde todo mundo é bandido!
_ Não. Não é todo mundo bandido, não, senhor.
_ Tá. Mas a maioria.
_ Não, não. Negativo. De onde o senhor tirou isso?
_ ...
_ Nas favelas, a população é de trabalhadores e trabalhadoras honradas, que ganham seu sustento honestamente. Sabe como é o nome disso, senhor Rafael? Preconceito. Isso se chama preconceito. E é lamentável.
_ Mas, professor... e nas favelas?
_ Quê que tem nas favelas?
_ Ah... onde todo mundo é bandido!
_ Não. Não é todo mundo bandido, não, senhor.
_ Tá. Mas a maioria.
_ Não, não. Negativo. De onde o senhor tirou isso?
_ ...
_ Nas favelas, a população é de trabalhadores e trabalhadoras honradas, que ganham seu sustento honestamente. Sabe como é o nome disso, senhor Rafael? Preconceito. Isso se chama preconceito. E é lamentável.
17 de junho de 2011
Magna Míriam
Eu queria ser, tipo assim, a Miriam Leitão: especialista em economia nacional, internacional, regional, específica, ribeirinha, tradicional, indígena, ocidental e oriental. Míriam também é capaz de comentar fluentemente sobre enchentes, dengue, parto, telefonia, seborréia, crédito, casamento real, irreal, surreal e crise de meia-idade. Você pode beber da sabedoria de Míriam por TV, rádio, revista, jornal, youtube e o blog dela. Para referências, Wikipédia, Desciclopédia e Pânico na TV. Não é maravilhoso?
Na ocasião, Míriam refletia sobre omelete da atual presidente, Dilma Rousseff, no programa Mais Você, de Ana Maria Braga.
12 de junho de 2011
7 de junho de 2011
Quitaram-me os cachos
Era fim da década de oitenta e o banheiro, lembro-me bem, tinha o chão coberto de ladrilhos coloridos. Incontáveis quadradinhos que eu tentava contar ou encontrar um padrão, agrupamento de cores e outras fixações infantis. Eu era pequena o suficiente para cair dentro da privada se me distraísse. Acontecia. E eu chorava enquanto, curiosamente, os outros riam.
César era sempre aguardado com ansiedade, como fosse celebridade ou coisa assim. Aparecia gente em casa não sei de onde. Tia vinha visitar, trazia as primas, as amigas, as vizinhas. Todo mundo queria aproveitar a visita do César. O César. Fazia daquele banheiro um império seu, onde desfilavam, uma a uma, as damas ansiosas de seu talento. Cabelo cacheado, longo, tipo Luis Caldas, brinco numa orelha só, antecipando a moda, sua orientação sexual não vem ao caso e seu jeito de tratar as mulheres, com elogios e adivinhações de gostos que nem elas sabiam que tinham o tornavam César.
E lá se ia a tia. Entrava no banheiro uma e saía outra. O coro feminino aguardava ansioso, de vez em quando espiando da porta. Eu, do sofá, era lembrada alguma vez, quando me vinham com biscoito ou pão francês. Ou algum resmungo. Não entendia bem aquela euforia, mas também não me importava. Eu gostava de sentir a casa quente, enroscar-me nas pernas dos adultos, ouvir conversas que eu não entendia bem e grudar a cara na máquina de costura da vovó que, fechada, lembrava uma mesinha de madeira escura, discreta, onde havia sempre um elefante de bumbum pra porta, que era para atrair dinheiro, ou sorte, ou sei lá.
Uma a uma se ia e saía. Algumas demoravam mais. Saíam com alguma meleca no cabelo, à semelhança de uma tortura de cheiro ruim. E, depois de mais outra, voltava pra dentro pra terminar o começado. Minha mãe, de cabelo liso, fez permanente um dia. Ficou bonita até. Bonita. Mas mãe a gente sempre acha bonita. Veio dela a fantástica idéia de me incluir no ritual. Decidida que eu já estava grandinha o suficiente, resolveu que a próxima vez que César fosse à casa, eu passaria pelas tesouras dele. Quando a ouvi dizer isso pela primeira vez, não atinei ao que significava. E um dia o dia chegou. César veio e foi a minha vez de me sentar no banheiro, na cadeira dele, na frente do espelho, mas não de frente, e esperar quietinha. Esperei, como mandou a mamãe, em quem eu confiava até aquele dia. Ele passava de lá pra cá e eu acompanhava com os olhinhos, sem mexer a cabeça, sem chorar. Serena, calminha. Até que ele terminou.
_ Tá bom, mãe. Não gostei. Cadê meu cabelo? – reduzido da cintura ao queixo, restou-me mechas e sobras sem graça, que não faziam voltinhas nas pontas.
_ Cortou, filha! Agora tem que esperar crescer. Ficou lindo!
Tudo bem. Cortaram meu cabelo sem minha permissão. Não tem problema. Três horas de choro depois eu estava quase recuperada:
_ Mãe... cola de novo, por favor...
_ Colar como, filha? Não tem como colar!
_ Com duréx, mãe...
_ Mas não dá, filha!
_ Dá sim... duréx gruda tudo... é você quem não quer...
Não sei, mas senti que o César ficou um pouco constrangido com meu escândalo. Não foi bem um vexame, eu sempre fui uma lady. Mas o choro foi copioso, confesso. E demorado. A vingança veio a galope. Meu pai me defendeu e mandou minha mãe não cortar mais o meu cabelo sem a permissão dele, o que não foi exatamente um alívio. A façanha se repediu e só fui mandar no meu cabelo sem a influência de todas as mulheres da família lá pelos meus 11 ou 12 anos. Um horror. Um trauma.
Mas era o final da década de oitenta. Pouco tempo depois, minha irmã viria. Depois o Pense Bem, Nintendo, Barbie que fala, internet. A vida nunca mais foi a mesma. Nem meu cabelo.
César era sempre aguardado com ansiedade, como fosse celebridade ou coisa assim. Aparecia gente em casa não sei de onde. Tia vinha visitar, trazia as primas, as amigas, as vizinhas. Todo mundo queria aproveitar a visita do César. O César. Fazia daquele banheiro um império seu, onde desfilavam, uma a uma, as damas ansiosas de seu talento. Cabelo cacheado, longo, tipo Luis Caldas, brinco numa orelha só, antecipando a moda, sua orientação sexual não vem ao caso e seu jeito de tratar as mulheres, com elogios e adivinhações de gostos que nem elas sabiam que tinham o tornavam César.
E lá se ia a tia. Entrava no banheiro uma e saía outra. O coro feminino aguardava ansioso, de vez em quando espiando da porta. Eu, do sofá, era lembrada alguma vez, quando me vinham com biscoito ou pão francês. Ou algum resmungo. Não entendia bem aquela euforia, mas também não me importava. Eu gostava de sentir a casa quente, enroscar-me nas pernas dos adultos, ouvir conversas que eu não entendia bem e grudar a cara na máquina de costura da vovó que, fechada, lembrava uma mesinha de madeira escura, discreta, onde havia sempre um elefante de bumbum pra porta, que era para atrair dinheiro, ou sorte, ou sei lá.
Uma a uma se ia e saía. Algumas demoravam mais. Saíam com alguma meleca no cabelo, à semelhança de uma tortura de cheiro ruim. E, depois de mais outra, voltava pra dentro pra terminar o começado. Minha mãe, de cabelo liso, fez permanente um dia. Ficou bonita até. Bonita. Mas mãe a gente sempre acha bonita. Veio dela a fantástica idéia de me incluir no ritual. Decidida que eu já estava grandinha o suficiente, resolveu que a próxima vez que César fosse à casa, eu passaria pelas tesouras dele. Quando a ouvi dizer isso pela primeira vez, não atinei ao que significava. E um dia o dia chegou. César veio e foi a minha vez de me sentar no banheiro, na cadeira dele, na frente do espelho, mas não de frente, e esperar quietinha. Esperei, como mandou a mamãe, em quem eu confiava até aquele dia. Ele passava de lá pra cá e eu acompanhava com os olhinhos, sem mexer a cabeça, sem chorar. Serena, calminha. Até que ele terminou.
_ Tá bom, mãe. Não gostei. Cadê meu cabelo? – reduzido da cintura ao queixo, restou-me mechas e sobras sem graça, que não faziam voltinhas nas pontas.
_ Cortou, filha! Agora tem que esperar crescer. Ficou lindo!
Tudo bem. Cortaram meu cabelo sem minha permissão. Não tem problema. Três horas de choro depois eu estava quase recuperada:
_ Mãe... cola de novo, por favor...
_ Colar como, filha? Não tem como colar!
_ Com duréx, mãe...
_ Mas não dá, filha!
_ Dá sim... duréx gruda tudo... é você quem não quer...
Não sei, mas senti que o César ficou um pouco constrangido com meu escândalo. Não foi bem um vexame, eu sempre fui uma lady. Mas o choro foi copioso, confesso. E demorado. A vingança veio a galope. Meu pai me defendeu e mandou minha mãe não cortar mais o meu cabelo sem a permissão dele, o que não foi exatamente um alívio. A façanha se repediu e só fui mandar no meu cabelo sem a influência de todas as mulheres da família lá pelos meus 11 ou 12 anos. Um horror. Um trauma.
Mas era o final da década de oitenta. Pouco tempo depois, minha irmã viria. Depois o Pense Bem, Nintendo, Barbie que fala, internet. A vida nunca mais foi a mesma. Nem meu cabelo.
5 de junho de 2011
De verdade
_ Tenho algo pra te dizer. Eu não sou a pessoa que você pensa que eu sou.
Eles foram se encantando e se envolvendo. Depois, é claro, de alguns truques. Mas poucos. Ela, professora, se fazia passar por aluna. Entrava na sala de mochila e tomava notas, só para estar perto. O mestre compactuava, bem como a coordenadora. Funcionou, mas era chegada a hora de dizer a verdade:
_ Tenho algo pra te dizer. Eu... não... não sou a pessoa que você pensa que eu sou.
_ Ah... bom... Eu também tenho algo pra te dizer. Eu também não sou exatamente quem você pensa...
_ O quê? Como assim???
_ Não. Eu conto depois. Pode dizer o que você ia contar.
_ Não!!! Conta você agora! O quê foi?
_ É que eu... era noivo... até... bem pouco tempo.
_ Pouco tempo quanto?
_ Um mês... e pouco...
_ E ela sabe que vocês não são mais noivos?
_ Ela... sabe... mas...
E a conversa enveredou por rumos desconhecidos. O primeiro segredo, inaugural, teve que ficar para outro momento. Um de menos honestidade.
Eles foram se encantando e se envolvendo. Depois, é claro, de alguns truques. Mas poucos. Ela, professora, se fazia passar por aluna. Entrava na sala de mochila e tomava notas, só para estar perto. O mestre compactuava, bem como a coordenadora. Funcionou, mas era chegada a hora de dizer a verdade:
_ Tenho algo pra te dizer. Eu... não... não sou a pessoa que você pensa que eu sou.
_ Ah... bom... Eu também tenho algo pra te dizer. Eu também não sou exatamente quem você pensa...
_ O quê? Como assim???
_ Não. Eu conto depois. Pode dizer o que você ia contar.
_ Não!!! Conta você agora! O quê foi?
_ É que eu... era noivo... até... bem pouco tempo.
_ Pouco tempo quanto?
_ Um mês... e pouco...
_ E ela sabe que vocês não são mais noivos?
_ Ela... sabe... mas...
E a conversa enveredou por rumos desconhecidos. O primeiro segredo, inaugural, teve que ficar para outro momento. Um de menos honestidade.
1 de junho de 2011
Sem causa aparente
Esta manhã passei diante de uma “Vidênte Conselheira, que faz e desfaz todo tipo de trabalho e traz seu amor aos seus pés”, conforme o anúncio. Especulei intimamente se me iriam pedir unha, cabelo ou cueca, caso é que só te tenho a escova de dentes, laranja, antiga, no espelho do banheiro.
Pensei quanto dinheiro se iria, quanto infortúnio de antes e durante seria ventura depois. Precisaria muito provocar a natureza do espontâneo? Pareceu-me ato de pouca fé.
Abandonei a tal “vidênte”, sem que me soubesse, a outros delírios que não os meus. Feitiço maior já foi acontecido. Desmaiou-me a razão e depressa recobrei em tropel. “Foi verão”, diziam-me, “foi verão”. Mas era abril quando você chegou. E o outono nunca mais partiu.
Pensei quanto dinheiro se iria, quanto infortúnio de antes e durante seria ventura depois. Precisaria muito provocar a natureza do espontâneo? Pareceu-me ato de pouca fé.
Abandonei a tal “vidênte”, sem que me soubesse, a outros delírios que não os meus. Feitiço maior já foi acontecido. Desmaiou-me a razão e depressa recobrei em tropel. “Foi verão”, diziam-me, “foi verão”. Mas era abril quando você chegou. E o outono nunca mais partiu.
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