No começo, escrever era uma necessidade externa, algo como resolver o problema do tédio diante de uma tela e duas opções: paint ou bloco de notas. Aos poucos virou uma necessidade orgânica de limpeza. Eu me sentava e executava ali solitária meu ritual de purificação, acasalando comigo mesma e gerando mornas as idéias foscas, recém saídas da adolescência febril, etapa de mortificação. Foi quando nasceu em mim o vício de perder as horas. Nunca estive completamente recuperada do irresistível impulso de passá-las mesmerizada numa ranhura qualquer de parede, chão ou teto.
Não me lembro como foi ou quando, mas percebi que estancar vida favorece a vida. Talvez aí tenha tido início o devaneio em que me meti, de achar que sei mais ao abandonar a divina luta de ser gente.
Foi nesse lugar onde notei que a morte não é coisa de se evitar, porque ao temer uma etapa de ser, somos com menos qualidade.
Aprendi a integridade do momento de morrer antes de chegar lá, então penso que não será difícil e aí meu enleio paira. É quase querer, mas não pela morte, num modo grotesco de antecipá-la ou sucumbir.
Trata-se de um outro proceder que se descobre por ser menos vivo e atento, menos atingido pelo estímulo chamado mundo.
Algum motivo que não me parece razoável (não importa quanto esforço eu faça) sustenta o choque dessa revelação, que pode não passar de ilusão.
Pode ser pretensão existir e pensar que vive, querer resistir, querer se entregar.
Mas o fato que não me larga é essa crença ingênua no peito, que vez me dói de um vazio excruciante, outra vez me contenta fácil, que há outro eu em mim que se desprega quando eu durmo e sonho livre.
Alguém que também sou me reside, faz de mim esquizofrênica busca por aquela que vejo e se mantém inatingível, de canga branca até os pés. Dizem ser azul claro a cor do meu espírito falido em ser só o que se é essencialmente. Tive de vir pesada e agora me reclamo a ausência, pois desejo me mostrar que sempre estou fora de mim.
Encaixe bonito acontece quando um outro me completa despretensiosamente ou diz, sem querer, o que me ocorria enquanto eu bem silenciava.
Sou feita desses que me esbarram e me inventam muito melhor do que posso ser na verdade.
Naquela hora perdida, proposital e vítima ainda, sinto que não há nada de suicida na transgressão de se desejar mais efêmero, posto que nascemos e crescemos minguantes.
É viscosa e teima a espera do outro dia. E inútil. É um impulso de vivo que, neutralizado, faz de nós mais vivos, recorrentes em expressar o inexprimível. É essa a função da língua: nomear para capturar e passar adiante. A função da memória, no entanto, é esquecer que não podemos.
Eu sou boa em esquecer. Por isso escrevo.
31 de outubro de 2011
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7 comentários:
Ha um trecho no livro de Hermann Hesse, o qual estou lendo, que diz que todos somos suicidas, posto que vemos na morte, e nao na vida, a salvação e a redenção.
Também matamos em nós tanta coisa, que nao deixa de ser um suicídio à prestação! Mas também ha que se ressuscitar tanta coisa em nós, para nós, que vamos por aí juntando palavras, acordes, traços...
Eu junto traços...
E eu esqueço de escrever. Minha memória me mata!
Maaaaaaaaaaaaaas, impactos a parte. O maior deles é o tomado pelo silêncio.
Sem o pedantismo de expressões cuidadosamente escolhidas.
"Do I contradict myself?
Very well then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.)"
Walt Whitman
Uma das coisas mais lindas q já li na vida!!! E pq será q não me adira ser vc a autora?!
Escrever é seu ato, assim como respirar para mim é nato ou sonhar quando me deito.
Me encantei com seu texto,agradeço muito o presente...
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