15 de dezembro de 2011

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Eu não me lembro de mais nada da menina. Apenas de seus cotovelos que mexiam. Não me lembro da voz, do cabelo, do rosto. Tenho a cor da sua pele somente porque os cotovelos estavam descobertos pela camiseta rosa. Todo o resto me escapa.

Quisera eu retê-la como fiz com o gosto do leite. Eu reconhecia quando minha mãe me enganava com leite em pó. Não era a mesma coisa, mesmo com chocolate. Eu não gostava, mas deixava passar. Reclamar é algo que sempre me deu muita preguiça. E havia outras coisas: o lilás da lancheira, o cinza do copinho, o céu que variava de tom, o chão de ladrilho – pedacinhos vermelhos de caminho –, banheiro, tanque de areia, baldinho. Ademais, como descrever um gosto?

Não queria que me fugisse, mas não sei dizer para além dos cotovelos da menina, quem eu olhava. Ela, debaixo da mesa, organizava peças gigantes de plástico colorido, como um grande quebra-cabeça.

Introspectiva e secretamente eu via que ela, de costas para a sala, não montava coisa alguma. Apenas dizia em ordem de cores e tamanhos o que era mais importante e, portanto, vinha primeiro na pilha. Eu não entendia, nem me importava averiguar. Deitava as garras em meus olhos aqueles cotovelos dançantes. A menina os movia com a segurança de ser dona deles.

Observar o movimento preciso, o baile de seus dois cantos, despertava-me a vontade, primeira vez em mim, de trabalhar. Eu tinha o impulso de pegar alguma coisa que precisasse de mim e fazer algo com aquilo, algo que precisava ser feito, nem que fosse de uma necessidade imaginária, satisfazê-la porque se tinha tornado a minha vontade inclusive.

Pasmada, desejei arrancar a menina daquele espaço onde ela se fechara, santa e resoluta, debaixo da mesa do refeitório. Quis só para mim a carência de ordem das peças, tocá-las, amassá-las, fazer nada para que vissem meus cotovelos queixosos de execução da tarefa que me deleitaria também.

Não sei quanto tempo passei pensando, sozinha, concentrada naquela concentração de menina. Mas a gente sente quando nos olham e virei pro lado. Minha mãe sorria para mim da porta. Não precisou estender os braços. Levantei-me e fui andando na direção dela. Minha mãe disse que tinha estado ali me olhando “um tempão”.

Não sei o que é ou quanto “um tempão”, assim como não sei contar o gosto do leite. Se há de servir a alguém, sei tampouco. Restou em meu relato a imagem dos cotovelos. Para mim, vale a pena sabê-los.

4 comentários:

Felipe Teles disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Magno Nunes disse...

Ahhh se vc tivesse me chamado eu ia lá falar com a menina...

Mas eu tb ia te sugerir uma marcha contra os enganos das mães... Elas acham que nos enganam... Bobinhas!

"Mãe, vc não me engana... Leite em pó é coisa de sacana"

Luis disse...

"Observar o movimento preciso, o baile de seus dois cantos, despertava-me a vontade, primeira vez em mim, de trabalhar. Eu tinha o impulso de pegar alguma coisa que precisasse de mim e fazer algo com aquilo, algo que precisava ser feito, nem que fosse de uma necessidade imaginária, satisfazê-la porque se tinha tornado a minha vontade inclusive."

Uma pérola: mais um ponto luminoso que você poderia explorar.
Um tema maior. Não é, Camila?

Rakal D' Addio disse...

O Luis é o nosso Luis? Pois, muito bem visitado o espaço, Caringe.