6 de abril de 2012

Quem há de se reconhecer?

"[...] Exemplos da expressão "constrangida" são designados como ofensa, ciúme e inveja. Em cada caso, um traço marcante da conduta é o auto-engano destinado a ocultar as fontes genuínas da ação. Por exemplo, o indivíduo 'tem uma opinião muito elevada de si mesmo para tolerar a idéia de ter agido erradamente, e assim apela à ofensa para desviar a atenção de seu próprio deslize, o que consegue identificando-se com a parte prejudicada... Obtendo-se satisfação em ser a parte prejudicada, deve-se inventar erros para alimentar a autocondescendência'. A natureza autônoma da ação é, portanto, suprimida – é a outra parte, acusada da má conduta original, do delito que deu origem a tudo, apresentada como o verdadeiro ator do drama. O eu permanece, assim, totalmente do lado receptor. Sofre as ações dos outros em vez de ser um ator por direito próprio.

Uma vez abraçada, tal visão parece propelir-se e reforçar-se por si mesma. Para manter a credibilidade, o ultraje imputado à outra parte deve ser mais assustador e acima de tudo menos curável ou redimível, e os consequentes sofrimentos das vítimas devem ser declarados ainda mais abomináveis e dolorosos, de modo que a vítima autodeclarada possa prosseguir justificando medidas mais abomináveis e duras 'em justa resposta' à ofensa cometida ou 'em defesa' contra ofensas ainda por cometer. As ações "constrangidas" precisam negar constantemente sua autonomia. É por essa razão que elas constituem o obstáculo mais radical à admissão da soberania do eu e a que este atue de maneira consoante com tal admissão.

A superação das restrições auto-impostas mediante o desmascaramento e a desvalidação do auto-engano sobre o qual elas se baseiam emerge assim como condição preliminar e indispensável para dar asas à expressão soberana da vida – uma expressão que se manifesta, em primeiro lugar e acima de tudo, na confiança, na misericórdia e na compaixão."

Amor Líquido, de Zygmunt Bauman

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