Era fim da década de oitenta e o banheiro, lembro-me bem, tinha o chão coberto de ladrilhos coloridos. Incontáveis quadradinhos que eu tentava contar ou encontrar um padrão, agrupamento de cores e outras fixações infantis. Eu era pequena o suficiente para cair dentro da privada se me distraísse. Acontecia. E eu chorava enquanto, curiosamente, os outros riam.
César era sempre aguardado com ansiedade, como fosse celebridade ou coisa assim. Aparecia gente em casa não sei de onde. Tia vinha visitar, trazia as primas, as amigas, as vizinhas. Todo mundo queria aproveitar a visita do César. O César. Fazia daquele banheiro um império seu, onde desfilavam, uma a uma, as damas ansiosas de seu talento. Cabelo cacheado, longo, tipo Luis Caldas, brinco numa orelha só, antecipando a moda, sua orientação sexual não vem ao caso e seu jeito de tratar as mulheres, com elogios e adivinhações de gostos que nem elas sabiam que tinham o tornavam César.
E lá se ia a tia. Entrava no banheiro uma e saía outra. O coro feminino aguardava ansioso, de vez em quando espiando da porta. Eu, do sofá, era lembrada alguma vez, quando me vinham com biscoito ou pão francês. Ou algum resmungo. Não entendia bem aquela euforia, mas também não me importava. Eu gostava de sentir a casa quente, enroscar-me nas pernas dos adultos, ouvir conversas que eu não entendia bem e grudar a cara na máquina de costura da vovó que, fechada, lembrava uma mesinha de madeira escura, discreta, onde havia sempre um elefante de bumbum pra porta, que era para atrair dinheiro, ou sorte, ou sei lá.
Uma a uma se ia e saía. Algumas demoravam mais. Saíam com alguma meleca no cabelo, à semelhança de uma tortura de cheiro ruim. E, depois de mais outra, voltava pra dentro pra terminar o começado. Minha mãe, de cabelo liso, fez permanente um dia. Ficou bonita até. Bonita. Mas mãe a gente sempre acha bonita. Veio dela a fantástica idéia de me incluir no ritual. Decidida que eu já estava grandinha o suficiente, resolveu que a próxima vez que César fosse à casa, eu passaria pelas tesouras dele. Quando a ouvi dizer isso pela primeira vez, não atinei ao que significava. E um dia o dia chegou. César veio e foi a minha vez de me sentar no banheiro, na cadeira dele, na frente do espelho, mas não de frente, e esperar quietinha. Esperei, como mandou a mamãe, em quem eu confiava até aquele dia. Ele passava de lá pra cá e eu acompanhava com os olhinhos, sem mexer a cabeça, sem chorar. Serena, calminha. Até que ele terminou.
_ Tá bom, mãe. Não gostei. Cadê meu cabelo? – reduzido da cintura ao queixo, restou-me mechas e sobras sem graça, que não faziam voltinhas nas pontas.
_ Cortou, filha! Agora tem que esperar crescer. Ficou lindo!
Tudo bem. Cortaram meu cabelo sem minha permissão. Não tem problema. Três horas de choro depois eu estava quase recuperada:
_ Mãe... cola de novo, por favor...
_ Colar como, filha? Não tem como colar!
_ Com duréx, mãe...
_ Mas não dá, filha!
_ Dá sim... duréx gruda tudo... é você quem não quer...
Não sei, mas senti que o César ficou um pouco constrangido com meu escândalo. Não foi bem um vexame, eu sempre fui uma lady. Mas o choro foi copioso, confesso. E demorado. A vingança veio a galope. Meu pai me defendeu e mandou minha mãe não cortar mais o meu cabelo sem a permissão dele, o que não foi exatamente um alívio. A façanha se repediu e só fui mandar no meu cabelo sem a influência de todas as mulheres da família lá pelos meus 11 ou 12 anos. Um horror. Um trauma.
Mas era o final da década de oitenta. Pouco tempo depois, minha irmã viria. Depois o Pense Bem, Nintendo, Barbie que fala, internet. A vida nunca mais foi a mesma. Nem meu cabelo.
7 de junho de 2011
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4 comentários:
Hoje Luis Caldas toca roque!
Tá vendo como o tempo passa....
Mas vc é barraqueira!
Imaginei vc balangando a cabeça, tipo Queen Latifa! "MEEEEEEEEEN YOU ARE CRAAAAAAAZY?"
Mas tudo bem, no fim dos oitenta pode...
kkkkkkkkkkkkk
Agoooooooora que eu entendi o porquê de teu cabelo sempre aparecer mais que teu rosto, em grande parte das fotos eu via. Era homenagem ao cabelo ceifado no final da década de 80.
E entendo também pq tu vives mudando o corte. É como se dissesse "Ó, mãe, a senhora não manda mais no meu cabelo, faço dele o que eu quiser, e nem choro mais."
hahahahaha
HAHAHAHAHAHA! Que graça, Camila Caringe!
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