31 de dezembro de 2012

Um marido, entre outras coisas


Na mesa do restaurante, duas amigas brindam com suco de laranja: 

__ Feliz ano novo, vida nova, carro novo, marido novo, tudo novo!, carro zero, marido novo... vida nova! 

*repetições facúndias constam do discurso original

26 de dezembro de 2012

Da série - Rascunhos

[O APANHADOR DE CONCHAS]





















É assim que todo o mal tem origem: na displicência e falta de discernimento entre o que pode ser bom, belo e o que não presta.

24 de dezembro de 2012

Noel


Talvez teria até sido melhor pegar uma criança emprestada por ali mesmo, pra disfarçar, mas não se deu ao trabalho. Entrou na fila e esperou sua vez chegar. E chegou: 

__ Oi, Papai Noel. 
__ Oi! Você quer tirar uma foto? 
__ Não. Quero conversar igual todo mundo. 
__ Mas tem crianças na fila, meu bem. Você poderia, por favor, aguardar aqui ao lado que na hora do meu intervalo eu... 
__ Não, não posso. É importante. Tem que ser agora. 
__ Bom... então pode falar. 
__ É que eu não gostei da sua localização. Acho que está muito escondido aqui no fim do corredor. 
 __ Ah, é que este é um bairro judeu e não existe este personagem na cultura deles. Então me escondem aqui. 
__ E você acha isso justo? 
__ Olha, eu... 
__ Eu acho que é discriminação! 
__ Sim, mas... 
__ A mensagem de um Deus de amor é essencialmente a mesma. Não deveríamos brigar por isso. 
__ É que... 
__ As guerras religiosas só ocorrem por desobediência ao mais importante mandamento: aquele lá que fala sobre o próximo! 
__ Entendo... 
__ E acho que a sua sujeição a esta regra excludente não nos ajuda enquanto humanidade. 

Ele ajeitou o cinto na circunferência fofa, alisou a barba pacientemente e sorriu, deixando as faces rosadas ligeiramente destacadas na carinha simpática: 

 __ Bem... Eu compreendo. Também acho este mundo mau. Quando ofereço doces às vezes as crianças não pegam porque os pais não as deixam aceitar ofertas de estranhos. São tempos difíceis. Eu sou Papai Noel há 13 anos, mas só do dia 1º ao dia 24. Depois sou uma pessoa normal... 
__ Foi o que eu pensei!

21 de dezembro de 2012

Registros – do que nos toca


“Esses dias me aconteceu uma coisa que até pensei em mandar pra você. É digna do seu blog. 

Eu tava lá na Praça 14 Bis com um amigo meu e veio um cara, devia ser morador de rua, se oferecendo para engraxar meu sapato. Daí eu expliquei: 

__ Mas querido, eu tô de tênis. Não dá. 

E ele disse: 

__ Não, dá sim! Vem cá! Coloca o pé aqui. – e abriu a caixinha, colocou meu pé em cima e sei lá o que é que ele ia fazer. Acho que ia escovar, limpar, inventar uma moda lá, sei lá. Mas eu tirei o pé e falei ‘não... vem cá... vamos conversar...’. Abri a carteira e disse ‘olha, me desculpa, eu só tenho três reais, pode ser?’. O sujeito aceitou e começou a falar e talz. 

Eu, para cortar um pouco o assunto, disse ‘então tá bom, queridão’ e dei um abraço no cara para me despedir e encerrar a conversa. Ele se deu por satisfeito e respondeu: 

__ Tá bom. Obrigado pelo abraço. – acenou e foi embora. 

Ele não agradeceu pelo dinheiro. Ele agradeceu pelo abraço.”

16 de dezembro de 2012

Evite a ruína















14 de dezembro de 2012

Compras


_ Mãe, o que você acha desse vestido? 
_ É legal! Vai lá experimentar. 

... 

_ Mãe! Vem ver! Quê cê achou? 
_ Não gostei. 
_ Não gostou? 
_ Não. 
_ Por quê? 
_ Tá parecendo uma fralda embrulhada. 
_ Uma fralda embrulhada? 
_ É! Uma fralda embrulhada! Sabe quando o nenê vai andando e a fralda tá meio larga, fica meio troncha? Então! 
_ Ah... 
_ Por quê? Você achou bonito? 
_ Bom, eu tinha achado, né? Até você dizer isso. 


 A franqueza é uma benção contundente.

11 de dezembro de 2012

Rasteirinha


A campainha tocou e ele foi atender. Era ela, um pouco mais cedo do que o combinado, antes do anoitecer. Parecia bem humorada, disposta, com as faces rosadas do dia de sol lá fora. Sentou-se no sofá muito à vontade e largou a mochila num canto. Ele notou a bagagem com um certo incômodo, mas procurou se concentrar no que ela dizia. Só para perceber em seguida que não tinha a menor importância. Ela já estava no sofá. Poderia ser ali mesmo. Olhando-a falar em seus trejeitos e inclinações de tronco, imaginava por onde começar. O decote parecia uma feliz opção, acessível às mãos ou à boca ou às três ao mesmo tempo. Talvez o cabelo. O cabelo era um jeito mais sutil de iniciar. Passaria a imagem de ser, quem sabe, educado, tímido. As mulheres gostam disso. As mulheres gostam mesmo disso? Bem, poderia ser a cintura. Se estivessem de pé e ele a segurasse no ângulo certo, ela tombaria para o sofá de volta e ele cairia naturalmente em cima dela. Poderia ainda ser algo mais pueril. Beijar-lhe as bochechas quentes e deslizar para as orelhas. Seria um caminho fácil até o pescoço e em seguida ela lançaria a coxa direita sobre as pernas dele. Ele tocaria seus pés e... 


Ele olhou para os pés e subitamente se interessou pelo que ela dizia. Ouviu com atenção irrevogável por uns quatro ou cinco longos minutos sem, contudo, obter pista do que desejava saber. Correndo o risco de explicitar uma injustificável ausência durante a meia hora anterior e correndo também o grande risco da indelicadeza por fazê-la repetir, perguntou objetivamente: 


__ ...Mas, onde você esteve hoje, antes de vir pra cá? 

__ Ah! Eu já disse! Vim resolver algumas coisas no centro pela manhã, encontrei uma amiga, ficamos andando até às... 

Ela não precisava dizer mais nada. Não importa o que estava dizendo. Não precisava. Que tipo de mulher sai de casa sabendo que vai caminhar e escolhe uma dessas sandálias baixinhas? Como ele poderia querer esta mulher tendo diante de si a visão de seu pé preto? E essa mochila, então? O que significava essa mochila? Dormir com ela sim, mas acordar ao lado dela nem pensar! Rompeu-se o encanto. Não queria mais. Querer o quê? Não havia nada ali para querer! Nada desejável, nada encantador, nada. 


Levantou-se sorrateiramente enquanto ela ainda dizia qualquer coisa sobre família. A dela? Não. Algo sobre cangurus. Foi até a cozinha e, enquanto esperava a água do filtro encher o copo, colocou o celular para despertar em dois minutos. Voltou à sala, sorriu, bebeu sua água e aguardou. O telefone tocou: 


__ Opa! Só um minutinho, querida. Preciso atender. Alô? Oi, cara! Sim, pode falar! Eu? Putz, é mesmo! Eu tinha me esquecido... Mas e se a gente deixasse isso pra amanhã? Hum? Sei... Ah... poxa vida... Sério? Não, então tudo bem! Tá bom. Tá. Tá. Então tô indo praí! Abração, cara! Tchau! 


E explicou pra ela, em outras palavras, claro, que estaria com outra mulher aquela noite. E, se ela quisesse saber quem, era só telefonar dentro de duas horas. Ele certamente já teria um nome.


9 de dezembro de 2012

Da série - Rascunhos


[TÉDIO É UMA COISA ASSIM QUE DÁ NA GENTE... QUE SENTE COMO SE NUNCA MAIS FOSSE DAR MAIS NADA...]



7 de dezembro de 2012

O "não" que vale


_ Papai! Eu quero um apontador... uma borracha... 
_ Pra quê? Pra perder? 
_ Não! Vou cuidar! 
_ Quero só ver.
_ E lápis de cor? Pode lápis de cor também? 
_ Não. 
_ Não? 
_ Não. Tá chegando o fim do ano. No ano que vem eu compro. 
_ Ah... por favor? 
_ Não. 
_ Tá. 

“Tá”? Como assim “tá”? 
A menina não vai se atirar no chão, pedir pelo amor de Deus, orar em nome de Santo Expedito, recitar o hino da consolação, sair correndo pelada gritando, tacar a cabeça na parede, morder o próprio braço, simular desmaio, nada? Nadica? 

_ Papai, você me ajuda a escolher o apontador? 
_ Claro! Tchô ver... Ah... todos são bonitos... Tem esse de estrela, olha que bonito! 
_ É... eu gostei... 
_ E o vermelho? O que você achou do vermelho? 
_ Eu gostei! 
_ Então pode ser. 
_ Posso pegar? 
_ Pode. 
_ Moça, o vermelho. 
_ ...por favor... 
_ Por favor, moça! 

E estava encerrado o assunto.
Sem mágoas.

4 de dezembro de 2012

Desforra


NINFA: Respirei aliviada. Por mim, Sócrates poderia terminar ali mesmo seu discurso e me daria por satisfeita, como quem participa de portentosa refeição. Assim era. E quantos, óh convivas de tantos reinos oriundos, quantos são esses terríveis homens sobre a terra, que pisam flores como fosse grama, que esmagam amor entre os dedos como material descartável às margens da grande arena. Os dramas que eu testemunhara eram somente por isso. Não creem esses homens pobres de espírito no que lhes anima a eles mesmos e lhes fala ao coração. Eros chega num repente e por falta de fé se despede e se desfaz sem que o mortal sequer dê à luz um único prodígio dele inspirado. Abafam suas boas artes no silêncio, na vergonha, na violência, no orgulho, na dúvida. Quantos homens assim esta terra ampararia?


29 de novembro de 2012

Notas da liberdade


O sono é acomodação do sujeito a si mesmo. Quando o sujeito se encontra ele repousa em si, adormece, embriaga-se. O estado de vigília é o desencontro de si. O despertar, no entanto, é traumático, porque a descoberta do outro o é. Mas, se o conhecimento é condição para a superação do trauma, então, para Lévinas, a superação nunca acontece. O outro nunca será objeto de conhecimento, de tal forma que estar com o outro será sempre um trauma. No entanto, Lévinas nos pergunta: se víssemos a humanidade no próximo, seríamos capazes de atentar contra ele?

Não é a partir do ser geral que ele vem ao meu encontro. Tudo o que dele me vem a partir do ser em geral se oferece por certo à minha compreensão e posse. Compreendo-o a partir de sua história, do seu meio, de seus hábitos. O que nele escapa à minha compreensão é ele, o ente. Não posso negá‐lo parcialmente, na violência, apreendendo-o a partir do ser em geral e possuindo-o. Outrem é o único ente cuja negação não pode anunciar-se senão como total: um homicídio. Outrem é o único ser que posso querer matar.
Eu posso querer. E, no entanto, este poder é totalmente o contrário do poder. O triunfo deste poder é sua derrota como poder. No preciso momento em que meu poder de matar se realiza, o outro se me escapou. Posso, é claro, ao matar, atingir um objetivo, posso matar, como faço uma caçada ou como derrubo árvores ou abato animais, mas neste caso apreendi o outro na abertura do ser em geral, como elemento do mundo em que me encontro, vislumbrei‐o no horizonte. Não olhei no rosto, não encontrei seu rosto. A tentação da negação total, medindo o infinito desta tentativa e sua impossibilidade, é a presença do rosto. Estar em relação com outrem face a face – é não poder matar. É também a situação do discurso.

LÉVINAS

26 de novembro de 2012

Registros – do que a gente aprende


“...E eu estava conversando esses dias com o meu melhor amigo, que é alguém de quem eu até pensava que... poxa... ele foi um cara que fez escolhas erradas e fracassou, né? Mas daí, conversando com ele, eu levei um tapa na cara. Não é nada disso. 

O cara mora num cortiço lá. Um só quarto com uma cama de casal, um guarda-roupa, um fogão e uma geladeira. Só. Não cabe mais nada. E é um lugar onde você anda com as perninhas apertadinhas assim, sabe?, porque senão não dá pra andar. E pensa: o sujeito com 22 anos, 22 anos, dormia na mesma cama o pai, a mãe e ele. 


Bom, ele conheceu aí uma menina numa balada. Daí dormiu com ela, ela engravidou, enfim. Teve o bebê. Então passou a dormir na mesma cama de casal o pai, a mãe, ele, a mulher e a criança. Eles se casaram. 


Esses dias sentamos para conversar e eu fui contar minhas peripécias de solteiro, já que ele casou e não me acompanha mais. Em determinado momento eu falei pra ele: “Mas cê não acha que cê perdeu muito por ter se casado tão cedo?” E ele me respondeu: “Pode ser. Mas ganhei muito também.” 


Eu olhei pra ele e senti a sinceridade. Quer dizer, o cara tem outros valores, cultua outras coisas... Foi uma lição de vida pra mim.”


22 de novembro de 2012

Da série - Rascunhos

[SEMPRE TEM QUEM NÃO COLABORA]



19 de novembro de 2012

Love and Rubbish - Why Poverty?


“Love is when you find one another and you love each other so much that you can’t be apart, even for a minute.
Then you gradually start a family, not immediately, but gradually. And you live together to the end of your life, if you love each other.”



16 de novembro de 2012

Breve vacilo de Julieta


_ E se me deixares, Romeu, se me deixares? Se, pior, caso-me contigo e nosso grande amor segue a rota das paixões vulgares? E se dou a ti, Romeu, o sangue de um primo, a honra de antepassados, família, futuro, vida, a cintilância de meus melhores dias, o fulgor minha alegria e te enfastias?
Romeu consideraria.
Após longa pausa, advertido do risco e como a querer proteger sua amada, avisa de nobreza nata a mais pura franqueza: a fraqueza.
_ ...Não sei.
_ Aceito!

13 de novembro de 2012

José Idôneo


11 de novembro de 2012

Coisa de esperar


_ Vou arrumar um cachorro.
_ Sério?! Bonito? Grandão?
_ Não... um vira-latinha mesmo... É que tô com muita vontade de lidar com gente. Mas é tão difícil... Acho que com um cachorrinho vai ser melhor...

9 de novembro de 2012

O caro sai barato


Com o trajeto automático de cabeça podia usar aquele tempão pra pensar várias coisas. Pensou churrasquinho. Saiu de casa às sete para chegar às nove, bateu o portão da frente e foi descendo a rua. Andou 20 minutos, pegou a perua pro terminal e depois o ônibus intermunicipal. Na estação Armênia do metrô parou na banquinha habitual e pediu o combo: palito, a carne espetada na madeira, com direito à banhar na farofa e o suco de laranja. Comeu no atraso e foi pagar normal, que nem toda vez:

_ Tó.
_ O churrasco aumentou um real aqui, visse não? – e apontou o rabisco no preço. O outro gelou.
_ Ah, mas você não me avisou!
_ Como não avisei? Você não perguntou!
_ Eu não perguntei porque é sempre o mesmo preço!
_ Bom, pois agora não é o mesmo preço e tá faltando um real.

Valendo-se da boa altura de nascença, o cliente explicou pedagogicamente, mas já sem toda aquela diplomacia, que não pagaria nem mais um centavo pela injustiça.

_ Ah, não vai pagar? E quer dar de macho pra cima de mim? Pois venha, moléstia, bubônica, filho de uma rapariga – a faca já acompanhando o desenrolar da oposição.

Cliente de um lado, churrasqueiro do outro, a platéia abriu pra dar mais palco. Marcão saiu na carreira e o credor atrás de passador na mão. Sei não como foi de cera que escorregou na fuga, foi-se embora pro matinho da margem e não conseguiu conter a queda pra dentro do Tietê. Barriga cheia, ficou boiando no meio de tudo lá até ajuda vir buscar. Custou caro o lanche, mas um real não dava não. Porque não tinha. Senão ia faltar pra chegar no trabalho aquele dia.

6 de novembro de 2012

Da série - Rascunhos

[RETRATO DA NOSSA CAMA GRANDE]



3 de setembro de 2012

Confidência


_ Padre, confesso que pequei. Menti por hábito, abusei da confiança alheia, padre, pequei por injúria, luxúria, gula e ingratidão. No final de cada dia não agüentei a pressão. Bebi, padre, excedi. Depois, presunçoso, entreguei à lassidão minha existência. Dos dias, soberba. O feitiço dos que têm algum poder. Era meia dúzia de gente que me presta ouvidos, padre, mas falei a eles tudo quanto demais. Não tive dúvidas e lancei rancores aos pés de pais e mães. Seus filhos, padre, disse de todos "índios, belos índios preguiçosos sois!" e sem remorsos dormi. Foi sobre dissabores, estes sim, meus colchões. Preconceitos que nem sei contar deixei que dissessem por mim, padre, guiaram-me as vaidades. Recusei amigos, abrigos, gatos molhados, feridos e capelas paradas bem no meio dos descaminhos. Não fui bom padre, padre. Qual a minha penitência?

_ Três terços à Virgem, filho, e vir aqui no meu lugar que agora é minha vez.

22 de agosto de 2012

Milagre


_ Não foi de nada, criança, serve de coisa alguma.
_ E quando foi de descobrir isso, vó?
_ Ah, isso faz tempo.
_ Muito?
_ É. Muito descoberto...
_ Tempo, vó! Faz é tempo?
_ Ah, sim! E espaço também, menino.
_ Como é que foi?
_ Bobage.
_ Mas como?
_ Bobage minha.
_ Tava calor... Tava frio... Foi o vô, foi?
_ Pra ele.
_ Pra ele o quê, vó?
_ O milagre. Eu disse que foi pra ele.
_ Pois não foi?
_ Sei não.
_ Por que cê disse então?
_ Porque eu queria que sesse.
_ Por quê?
_ Tava bonito.
_ Por quê?
_ Porque o sol, menino. O sol termina de nascer tem hora.
_ E depois?
_ Daí é dia.
_ E antes?
_ É noite.
_ E bem naquela horinha, era o quê?
_ Milagre.
_ O quê é milagre, vó?
_ A coisa improvável que Deus quis.
_ Quê foi que Deus quis que cê deu pro vô como se sesse dele sem saber se era?
_ O sol, menino. Dei sol pra ele.
_ Mesmo??? E como foi isso? Pegou na mão, foi?
_ Não. Peguei na parede.
_ Pegou na parede e como foi?
_ Deixei lá o sol nascendo. A janela tava fechada e as frestinha desenhando um tipo de mosaico na parede, com os elos assim, tudo infileradinho, como anéis de luz assim, mexendo devagar. O sol nascendo e os elos iam tudo indireitando, unindo, sabe? Falei pra ele que era milagre.
_ E era?
_ Era.
_ Como cê sabe, vó?
_ Ah, se nota.
_ O sol nasce todos os dias e eu nunca notei milagre disso.
_ Mas aquele sol era milagre. Tem sol que não é não.
_ E como cê sabia que aquele era?
_ Aquele tinha seu vô ali pra olhar. Quando eu disse "olha!" ele já tava atrasado, mas ficou na cama comigo pra ver o sol na parede porque eu disse que era milagre. Então ficou sendo.
_ Eu vou dar um milagre pra alguém um dia também.
_ Ou não, menino.
_ Por que não, vó?
_ Já não falei que milagre não tem serventia?
_ Por que cê deu um pro vô, então?
_ Porque eu tinha um.


20 de agosto de 2012

Criança Esperança


Um flash digno de nota:

_ Minha mãe é japonesa... e... meu pai... é japoneso... Então... eu... sou japonesa... mas só que eu sou pequena.


31 de julho de 2012

Sobre seu sertão do fim de mundo


“No sertão
do fim de mundo”
deve de ter até na flor
todo amor de que ele é feito
cacto, queimor
ao menos um faminto
e terra vermelha
jazendo sob o cozido.

“No sertão
do fim de mundo”
deve de suceder
chover às vezes sim
muita vez não
e quando o raro
é dia de festa
festeja também
o que não presta
pra aprender levar pisão.

“No sertão
do fim de mundo”
defloram as ancas
fêmeas como
em todo lugar
no pau dos bichos
e é prenhez de teimosia
mais do que de esperança
que faz brotar
sem água
mais criança.

“No sertão
do fim de mundo”
ouvi dizer
que vai lá ser
o berço amarelado
nascido o sol
de eldorado
constrangido do
pálido queimado
à escassez.

“No sertão
do fim de mundo”
eu vim saber que
sim foi ele
fino pensado
de vazio e solidão
em solidariedade
à reiterada rejeição
da variedade.

“No sertão
do fim de mundo”
deve de ser ainda mundo
que sertão é um tipo dele
só que diferente
do tipo que
pouca gente entende
onde talvez nada dê
em se plantando
mas que já é ele
o que pode
o que deve de ser.

24 de julho de 2012

Passar por ninho


Dava passos. Eram irregulares, mas ele dava passos. Ora saltitava também ganhando o espaço e preenchendo de possibilidades o oco. Tinha dias que tinha pressas. Volitava nas horas, forçando com gracejos as passagens.
Eu rígida.
Até que súbito, resoluto, decidiu usar a boca. A ideia nascida da consciência bruta. Boca e língua em atrito comigo ia lhe dando o gozo podotátil do quase que recua. Corpo em esforço e ritmo.
Eu frígida.
Ele cores. Um pedacinho de arco-íris, verdadeiramente. Bonito. Por isso era preciso guardá-lo, inescapável esse fugitivo de cantos, mil encantos despertando cobiça de vida. Ele vivia.
Eu lívida.
Era um pouco silêncio e já se ouvia coração, apressadinho. Calorzinho costumeiro, era calor a tradução, quentinho no seu manto elegante, que esgueirante e taciturno desfilava de lá pra cá.
Eu fria.
Mas deve ter ido cansando, não sei bem. E esmorecendo, o viço esvaindo sem muito sintoma fora, só uma perda gradual de personalidade. O comportamento. Foi se vendo fora o que ia dentro. Até que amanheceu imóvel.
Eu rigorosa.
Imóvel até ser encontrado e removido, não mais automovível, impossível, perecível. Foi de ser assistido à vida breve, bala de clavina queria ter sido e foi passarinho. Passarinho.
Eu gaiola.

19 de julho de 2012

Imorrível


Agora é tarde.
Não há retorno.

Muito agora já te conheço
cientificamente
tuas palavras de predileção
as que te custam mais caro
as que não têm preço.

Sei das tuas mãos o tamanho
em relação às minhas
o que é teu lampejo
alegria
de teus furacões a força
e a mania.

Tenho em lembrança teu
grande medo
que em segredo
até de ti me contaste
teu pequeno grande orgulho
vestido de leãozinho
tuas chantagens emocionais
contigo mesmo.

Sei teus olhos em variados graus
de iluminação e sentimento
teu exílio, tua fome
as performances da fanfarrice
teus artigos principais.

Lamentos, regressos, progressos
listados na modorra
esperando os abismos
cantando presenças
em fila indiana.
Até eu sou fantasma
nessas minhas memórias
que desbotei a ponto de lá
parecer mais viva.

Sei tudo e não é preciso
saber por onde andas.
Qualquer coisa vai
fechando em si o cerco
da sapiência
o elo indissolúvel
por resistência
do teu orgulho.
É feia a ferida
e cheira mal.
Mas cura.

O elo, no entanto,
não sei se tem jeito.
Há de responder aos
sucessivos testes
do tempo.

7 de julho de 2012

Às vezes as pessoas procuram por milagres. Às vezes os milagres procuram por pessoas.

4 de julho de 2012

Sobre o peixe




Eu posso explicar. Meu peixe QUIS morrer.

Como eu sei? Ora... esse é o tipo de coisa que se percebe convivendo com alguém. Uma certa melancolia, tendência suicida, a fome que não quer ser satisfeita, a dor que se alimenta.

Ele quis.

Em compensação, Vítor Massao tirou uma foto do peixe e o eternizou até mais bonito do que era na verdade.

Meu peixe era selvagem. Não se importou com meus sentimentos e morreu.

Dia desses, conversando com o poeta, refleti sobre essa conduta:

“A selvageria me parece ser alada. Terrestre quando quer, escapa pelos altos fazendo de qualquer céu a saída. Se o redor se estreitou, a tática é buraco, mergulho, vôo. Selvageria pra mim se parece com velocidade e baixa inclinação à redenção. É uma disposição infinita e violenta à lealdade consigo mesmo, ainda que contradiga compromissos, verdades, virtudes e sentimentos alheios.

Eu, por exemplo, considero-me um ser selvagem. E é uma pena que reconheçam nisso algo a temer. Não é. O selvagem não é duro, pelo contrário. É mole, afável, mas vigoroso. De um selvagem jamais se verá atitudes medianas, meramente políticas, preocupadas com a polidez. O selvagem fere, mas ninguém mais do que ele está aberto ao sofrimento. 

E não é assim, poeta, que só estando aberto ao sofrimento estamos verdadeiramente postos a amar?

O peito do selvagem se oferece como alvo todo o tempo. A dor selvageriza. Cavalgar, voar, mergulhar, livrar-se da lança sabendo que nunca completamente. Empreender o esforço perdido de se poupar, amar um pouco menos, conter-se um pouco mais.”



1 de julho de 2012

Passado


Tem hora que chega
Mastiga memória tem hora
Que acha ser gente até ver
Se remói é só memória

28 de junho de 2012

Registro


(((silêncio)))
(((silêncio)))

Vozes no escritório:


_ Esse já dá pra montar, porque esse não tem recomendação.
_ É. O pequenininho já pode tirar, né?
_ Mas eu já batia...
_ Essa colorida aí, do grande, precisa mandar pra ela...
_ É... vai tirando...
_ Depois tira.
_ Não, é que vai bater as meninas.
_ Ah, por isso cê quer que mande.
_ É. Não, mas acho que o capítulo dois são essas páginas aqui... 47, 48, 49, essa daqui não tem...
_ Tô tirando só dessas mesmo.
_ Então tá bom.
_ Cê quer que eu deixe na sua mesa?
_ Cê deixa na minha mesa?
_ Eu deixo na sua mesa.
_ Então tá bom.


(((silêncio)))
(((silêncio)))

O cacto indiferente colhe impressões em 360 graus. 

Barulho de ônibus e sirenes lá fora. 
Som de teclas.
Estas.