É assim, vou tentar explicar:
Um pensamento, embora tenha um princípio e um fim, é um
contínuo de fronteiras indistintas. Todo pensamento é, em si, baseado num
pensamento anterior e desencadeará um pensamento posterior. Está fora do tempo e
insubordinado a ele.
Ops! Rápido demais. Então vamos mais devagar.
Assim como uma fotografia congela um momento, um pensamento
também o faz. É possível olhar uma fotografia que estampa um rosto inalterado
depois de muitas décadas. Da mesma maneira, se pensarmos em um objeto hoje e o
pensarmos daqui a vinte anos, o objeto não terá envelhecido, não terá caído em
ruínas nem terá sido afetado pela passagem do tempo sentida no corpo que o
pensa. [Heidegger] Assim é com qualquer idéia, um sonho, um desejo. É possível
acessá-los muitos anos depois sem que estes tenham sido tocados pela ação do
tempo.
E é também o que acontece com os sentimentos. [Peirce]
“...assim, se este sentimento está presente durante um lapso de tempo,
ele está completamente e igualmente presente em qualquer momento daquele
tempo.” [Collected Papers, 1.306]
É possível acessar um sentimento depois de muitos anos de
sua constatação e perceber, com surpresa, que ainda está intacto e vigora em
sua talidade (suchness). Mas e quando o sentimento sucumbe? E mais: o que houve
quando ele sucumbe porque foi reiteradamente desgastado por eventos positivos,
ou seja, momentos factuais, conectados à temporalidade?
“Cara Camila,
meu namorado me traiu e o amor morreu.
A traição aconteceu no tempo e meu amor foi afetado.
Acho que você está louca.
Estimo as melhoras.
Com consideração.
Sua leitora.”
Aí vai a teoria:
O sentimento, que não pode ser impensado, mas nascido do
fluxo contínuo entre sensação e pensamento, teve um começo. Esse ponto inicial,
no entanto, nunca será precisamente localizado, apesar de ser possível supor
sua descoberta. É possível dizer, não sem esforço, em qual momento percebemos
que amamos, mas não é possível dizer com precisão em qual momento o amor
principiou em nós. Ele se deu em fluxo, foi se desenvolvendo. O sentimento não
é pontual. Pois bem. Da mesma forma que relações de outra natureza se
transformam, por exemplo, numa relação amorosa, uma relação amorosa pode,
portanto, se transformar numa relação de outra natureza.
Algo que começou com um sentimento de simpatia pode se
transformar em amor. Não é impossível, inclusive, que um sentimento de
antipatia se transforme em amor. Não é difícil perceber que uma grande mágoa
oculta, na verdade, um amor frustrado ou reprimido. A decepção só ocorre quando
houve expectativa. É fácil ver como o sentimento transita no fluxo de nossas
continuidades, a saber, pensamentos e sensações.
O sentimento que se deixou abater por fatos ocorridos no
tempo, na verdade, foi abatido por elementos de fora do tempo desencadeados por
um momento pontual, localizável. [Caringe] Então, veja: seu namorado te traiu e
isso fez com que você deixasse de o amar. Perfeito. Mas não creio que isso se
deu no espaço de um clicar no interruptor. A traição (fato positivo) ocorreu em
data e hora específicas. Ele desencadeou uma sensação terrível, que foi
pensada. O pensamento, as obsessivas lembranças dos momentos abruptamente
interrompidos incorreram em sensações de frustração e dor. A dor vai aparecer
do lado de fora [Ibri], afetar humor, ânimo, apetite, sono. Será visível. E,
parando para se observar, você vai refletir sobre ela e procurar encontrar seus
erros e soluções para o sofrimento. A reflexão trará novos sentimentos, que
trará novos pensamentos, que trará novos sentimentos, que trará novos pens... Isso.
Assim vai. De maneira que o sentimento, que está fora do tempo, vai sendo
depurado, já que sua função estará sob forte e contínuo questionamento. O que
está fora do tempo, portanto, só será afetado por outros elementos que também
estarão fora do tempo. O fenômeno temporal desencadeou um processo interior
não-determinável. Da mesma forma que a traição acabou com o amor, poderia não
tê-lo feito. É possível ser traído e, embora a relação tenha sido irreversivelmente
abalada, o amor continua lá, participando da existência dos indivíduos. Ou o
contrário: ainda que nenhum fato específico tenha abalado o amor, ele esmorece
e muda.
O que concluo é que é possível que um sentimento (amor,
raiva, mágoa, afeição), uma vez nascido, dure todos os dias de todos os anos de
nossa vida, embora esteja sujeito ao fluxo do complexo emocional. Esse
resultado pode ser maravilhoso.
...Ou dramático.