13 de dezembro de 2015

Versa Maria

16 de agosto de 2015

Dez anos


Este blog completa exatamente hoje exatamente dez anos ou exatamente 3.652 dias (contando dois anos bissextos). 
Deveríamos colocar velas em um bolo e cantar parabéns, recuperar o top dez entre as 851 postagens, fazer especulações risíveis sobre o que motivou as 80.475 visualizações destas páginas. 
Mas fiz melhor. Contei pro Vitor meu plano diabólico. 
Ele me deu outro banner lindo e me tocou pra frente. 
Este blog a 
ca 
bou.

15 de agosto de 2015

Guardiã


Chegamos na praça pela manhã e sentamos, o mestre Jedi e eu. Uma praça do interior onde conversas fluíam melhor. Precisávamos de toda a fluidez do universo para falar sobre aquelas duas cabeças privilegiadas que nos mobilizavam. Em dado momento ele perguntou: 

__ Você acredita em mim? 
__ Acredito. Por que? 
__ Às vezes eu ouço umas vozinhas aqui no meu ouvido que me dizem coisas... e agora elas estão falando algo sobre você. 
__ Sobre mim? 
__ Sim. 
__ O que elas dizem? 
__ “A maturidade vai revelar a sua missão de guardiã.” 
__ Guardiã? Do que se trata? 
__ Não sei. Não tenho ideia. Mas você vai saber quando chegar a hora. 
__ Deve ser uma coisa muito preciosa, né?, pra precisar de guardiã. 

Demos risada.
19 de maio de 2012. 
Sei porque anotei na capa do livro de Hilda que tinha nas mãos. 
Anotei a conversa inteira, inclusive essa parte. E foi dessa parte especificamente que lembrei quando me dei conta de que o sagrado se comunica conosco da mesma maneira como nos comunicamos com ele. Se falamos poesia, ouvimos poesia. 

A moça me disse para ler todo o documento antes de assinar. Segurei o papel e li. Era uma repartição lotada de pastas com papéis que pulavam para fora do elástico, uma ilha de mesas e meu documento lá. Fui lendo do que se tratava a coisa toda nos mínimos detalhes, verificando os dados, as responsabilidades, os números. Cheguei no rodapé em que o juiz determinava: 

“Nomeio Camila guardiã de…” 

Guardiã. 
Essa palavra. 
Dei risada. 
A moça não entendeu. 
Eu sim. 
Assinei. 
Devolvi a via dela. 
Dobrei a minha. 
O mistério ganha ares ainda mais belos quando o compreendemos.

11 de agosto de 2015

Veladas


Quando vi o rosto de Suhayr pela primeira vez, não acreditei na sua beleza. A burca dava a ela um ar de profundo mistério e a única pista, um par de olhos verdes em longos cílios, era arrebatadora. E ela sabia disso. Mas como se sente uma mulher usando uma túnica escura da cabeça aos pés debaixo do sol do meio-dia? "Honrada, respeitada, protegida, valorizada." Durante alguns dias, segui os passos de sua lógica para compreender do que se tratava aquele raciocínio. 

Meu novo texto no Blog Inverso.

4 de agosto de 2015

Homens que batem


"Na nossa comunidade, onde tem mulheres feministas, quantas Xicas da vida foram mantidas em cárcere privado durante dez anos, sobreviveu e agora tem seqüelas, cega de um olho, dois natimorto, duas taquicardia, 51 anos, fiz ontem, tô viva. Eu fui espancada por um homem, mas não tomei raiva dos homens. Ainda acho que vou encontrar meu príncipe encantado. Eu quero voltar a estudar, fazer faculdade, estou começando um curso de inglês agora, não dá mais para camuflar a situação.”

Meu novo texto no Blog Inverso

30 de julho de 2015

A virilidade do homem branco




Fiquei muito brava com a notícia do dentista que matou o leão no Zimbábue. Não conseguia parar de pensar nisso. O cara tem a cara de atravessar o planeta, sair lá do consultório nos EUA pra ir pra África atirar no leão. Quer dizer, né? Não tem mais nada pra fazer. Sente falta da sensação de masculinidade, força e triunfo perdida na vida moderna besta e vai lá com arco, flecha e rifle, caça, degola e escalpela o animal. Não antes de tirar umas fotos bem bonitas pra mostrar pra galera.

Fiquei transtornada ao saber os detalhes.
É o fundo do poço da pobreza de espírito e da vilania. 
Um caso grave de desvio de caráter.
E o pior: eu conheço essa com laranjas.

29 de julho de 2015

Denúncia


Operação Lava Jato investiga a participação de Christiane Pelajo, William Waack e Carlos Alberto Sardenberg no maior escândalo de corrupção da história do universo conhecido. Segundo o ministro da fazenda, Joaquim Levy, a boa vontade contundente do trio na divulgação de cada detalhe com esmero e paciência só pode ser indício de formação de quadrilha, cartel, corrupção ativa, passiva, dedo no bolo e olho no peixe. “Quem deve teme”, disse o ministro rapidamente enquanto saía para dar uma volta de bicicleta com Dilma depois do café da manhã. 

A presidenta aproveitou a oportunidade para reiterar que Gilberto e Caetano também estão na mira. Mas daí retrocedeu adotando termos mais amenos quando se lembrou de que Israel é parceiro comercial do Brasil. “A Polícia Federal tem autonomia. Justiça seja feita.” A diretora da escola infantil brasileira Passinho Inicial comentou com alguns pais sobre a sorte dos alunos em relação às crianças palestinas. “Temos paredes e merenda”, teria dito em off a uma fonte que não quis ser identificada. Eduardo Cunha, presidente da Câmara que ficou de mal do governo recentemente, pediu que a escola seja incluída na CPI dos Fundos de Pensão.


20 de julho de 2015

Fô na cabeceira e outras histórias


__ Consegui fazer a criança comer alface pela primeira vez. Pergunte-me como. 
__ Como? 
__ Coloquei numa cumbuca de metal várias folhas lavadas com azeite e bem pouquinho sal. Daí comecei a comer na frente dela sem oferecer, devorando e delirando de prazer. Ela ficou curiosa e se aproximou. Deixei ela pegar. Ela colocou na boca e cuspiu. Eu fingi que não vi e continuei comendo alucinadamente. Ela insistiu outra vez e cuspiu. Na terceira, começou a me imitar e comeu! 

___________________________________________ 

A pequenininha não me acorda mais exigindo o teté. Agora mudou. Acho que ficar gritando “mamãe e teté” era meio desgastante. Agora ela simplesmente fica de pé no bercinho e sorrateiramente... acende a luz na minha cara. Muito mais prático! 

___________________________________________ 

Fomos a uma loja de plantas e compramos uma mini era e uma mini samambaia. Para a mini pessoa que ameaçava tacar os vasos de vidro no chão, o moço deu uma mini flor de brinquedo, que ela adorou. Chegando em casa do passeio, ela estava com sono e coloquei-a no bercinho para descansar. Pedi para guardar a florzinha, mas ela não deixou. Queria ficar segurando. Consenti e saí do quarto. Depois voltei para vê-la dormir e encontrei isto:


19 de julho de 2015

Minha história sem graça


Cheguei na padaria para tomar café da manhã e a moça que me atendeu perguntou se era o de sempre. Eu me senti muito previsível, então pedi o cardápio para dar uma olhada. Ela ficou me esperando decidir e aí eu pedi o de sempre mesmo.

10 de julho de 2015

A origem do mal


Já de longe se me perguntam é de verdade essas coisas que contas e eu de pescoço mole tem hora a cabeça pendendo pra frente resignada respondo sim. 
Eu mesma me surpreendo muita vez e por isso até implico com a ficção. Qual serventia se com essa vida tão rica de absurdos? que chegar em casa com a água a nos receber à porta já é em si de se estranhar. Bati no vizinho do lado só buscando explicação e o que consegui foi mais. A água descia da máquina de lavar do vizinho de cima inundando nós dois de encanamento compartilhado e o Henrique se oferece para me ajudar a não afogar. Tomei providências por ordem de importância. Primeiro evitar que a criança dormisse sobre as águas e jamais acordasse. Vovó esta noite. Depois, um pedidinho para o vizinho de cima. Bati as falanges médias naquela porta: 

__ Quem é?
__ Camila, a vizinha de baixo.
__ Não conheço.
__ Ué, mas pode conhecer. É só abrir a porta. (isso podia ser uma cantada, repara)
__ Não, agora não.
__ Olha, eu preciso falar com você. Estou com um problema. Você poderia abrir a porta por favor?
__ Não. Não quero.
__ Bem, no meu apartamento está vazando a água que está vindo da sua área de serviço. Você poderia por favor desligar a sua máquina de lavar até amanhã, quando o encanador vem?
__ Não. Não quero.
__ Vou ter que falar com o síndico.
__ Faça o que quiser.

Desconcertada com tamanha maturidade contei ao Henrique sobre a conversa riquíssima com o vizinho de cima. Não evitamos rir jogando a água para fora que descia em cascata alagando dois corredores e afetando outros apartamentos. 
Na manhã seguinte ele reconheceu na lembrança do vizinho de cima o sujeito de bem que cruzava no elevador de vez em quando. “Parecia normal.” 
Confessei que quando fui assaltada ou agredida ou assediada ou prejudicada de alguma forma, o fui por sujeitos que podiam ser bastante agradáveis quando ninguém precisava deles. 
É que o mal é banal. E começa com a indiferença. Depois se espalha em cascata, afetando outros apartamentos. 
A mesma oportunidade no entanto revelou o lado bom. À direita da minha porta para quem está de saída e precisa de solidariedade. Lá se encontra generosidade. Em português e inglês. 

2 de julho de 2015

A gente se esforça demais

É o que eu fui reparando, a tensão do que é certo censurando o importante. Nisso eu pensei naquela tarde de festa junina na fazenda, quando ouvi a voz das crianças atrás de mim. Entrei com a minha filha no colo na casinha de pau a pique de cuja entrada pendia a plaquinha indicando “casa de pau a pique”. O fogão à lenha, a mesa de madeira, uma pequena máquina de costura e um segundo cômodo com uma cama de colchão de palha. Janelas e porta eram apenas seu contorno sem paradas. E o telhado. 

Enquanto eu posicionava a pequenininha para fazer a foto, uma outra mãe entrou com suas duas crianças um pouco mais velhas. As crianças pareciam encantadas, mas a mãe estava entediada, olhou ao redor e abandonou a casa. Coloquei a bebê de pé nos joelhos para que ela alcançasse a vista e ouvi às minhas costas enquanto as crianças deitavam na cama e se cobriam com a palha muito entusiasmadas. O menino disse para a menina: 

__ Queria que a minha casa fosse assim. Não. Queria morar aqui. Queria morar em um lugar como esse. Ou… pelo menos ter um lugar como esse pertinho, para eu ir sempre que eu quiser. Eu queria poder vir aqui todos os dias e ficar aqui. 

Para ler o texto na íntegra e ver a foto, clique aqui e visite a página do Blog Inverso.

25 de junho de 2015

Sobre manhãs e frios


Resposta dura para uma pergunta poética: 

__ Meu frio na barriga anda atrás da minha filha cada vez que ela corre, bate a cara em alguma coisa ou bate alguma coisa na cara. E normalmente a coisa é dura, não tem a poesia das bochechas dela. 

Corta para… 
Primeiro pensamento do dia: 

__ Hum? Despertador tocou na hora certa. Graças a Deus ainda não estou atrasada. Tenho mais alguns minutos para estar. zzzzZZZ… 

Segundo pensamento do dia: 

__ Teté! 
__ Uhum. 
__ Mamãe! 
__ Hum? 
__ Teté! 
__ Uhum… 
__ Mamãe! 
__ Hum? 
__ Teté!!! 
__ Uhum... já vou filha. Mamãe já vai trazer seu teté… 
__ Mamãe!!! 
__ Hum? 
__ Teté!!!!!!!!!

23 de junho de 2015

(mais) Vagas para Comunicação

É um serviço de utilidade pública do qual tento me servir. Então acho importante compartilhar o fato de que as melhores agências de emprego do universo contam com um avançado sistema de monitoramento de vagas, filtros por interesse e alertas periódicos via e-mail. Digitei na busca “comunicação social”:

Editor de física
Editor? O que ele faz? Edita o professor? Edita o aluno? Edita a física?

Corretor(A) De Imóveis (Sem Experiência – Lançamentos – Venha Fazer parte Deste Grande Sucesso de Vendas
E A Editoração Entra Nisso Como? Editando As Maiúsculas Em Substantivos Comuns?

Assistente com. de vendas
“Assistente” é o indicativo da função ou na realidade essa pessoa seria completamente responsabilizada com registro subestimado para não receber o piso da categoria? Aliás, qual categoria? Vendas? Ué! Mas eu estava pesquisando comunicação social...

Coordenadora Administrativa
Precisa-se de formação em comunicação porque a administração é a arte de saber fazer leva-e-traz, imagino.

Designer
Um bom comunicador é aquele que se comunica de todas as formas: escrevendo, falando, desenhando, tocando oboé e fazendo lasanha de berinjela.

Montador de painéis eletrônicos
...ops! Atualização das aptidões: ...de berinjela E montar painéis eletrônicos. Ok.

16 de junho de 2015

Noite no jazz

Os rostos em gozo, em conversa sem palavra, dedilhando o tempo improvisado.
Notei na penumbra a democracia do Hammond Grooves. Um filho de militar e um voltado pra cidade desde o Xingu sob a égide de um mesmo som. Na nossa mesa, Maria. Mara. Mari. Moira. Não me lembro bem. Com o Paulo. Na outra, não lembro o nome do filho do homem. Só da cor da camiseta, porque parecia combinado com a namorada: o vermelho petista que a Talita trazia desfiadinho nos braços. Debaixo da mesa, a volúpia que o jazz inspira. Ou dita?
O desfile lento da silhueta desenhada por Niemeyer, Ivone recebia quem se ia chegando.
Olhei para o lado e tive de aproveitar a presença de um artista que ainda bem é meu amigo e me perdoa as tolices. Perguntei o que é isso arte como quem já não suporta o silêncio de Deus às atrocidades. “É perder o medo. O risco. Fazer alguma coisa com o vazio.”
Na parede, a discreta dica da luxúria que se quer elegância.


8 de junho de 2015

Professora substituta


Reunião de pais e mestres. A hora da verdade. 
Tudo o que sua criança andou fazendo longe dos seus olhos aparece ali. 
A professora expõe detalhes do comportamento individual, coletivo, da rotina, do programa e das atividades: 

__ Todos eles gostam muito das atividades. Mas a Helena é a mais entusiasmada. O dia que eu faltar, já deixei avisado que ela pode me substituir tranqüilamente. Atividade é com ela mesma. 

Acho que vou ter que emancipar a minha criança de um ano e cinco meses para ela poder exercer o magistério.

24 de maio de 2015

Desaparecida


Breve o tempo de uma oração. O de comer aquelas duas laranjas quietas sob o nó do saquinho azulado. O tempo da rampa que descíamos e me deu chance de olhá-lo bem, de sentir seu cheiro no rastro, o trâmite de seus ossos, a ousadia dos cotovelos se insinuando para fora da pele. A cor daquela pele no contraste da camisa branca alinhada tanto quanto lhe foi possível. Havia esforço ali, era visível. Sua crença nas laranjas que levava suspensas à esquerda com delicadeza e no cinto para quem traz a cintura no peito. Sua fé no jeans marinho que não oferece risco. Parou já perto da catraca a procurar o bilhete nos bolsos. Minha prece por ele terminou na pequena esperança que estivesse lá qualquer coisa do mundo que ele buscasse. Porque quem trata com tal respeito duas laranjas, arrasta consigo o olhar amoroso da estranha, diminuta diante de tanta decência, eu sem importância.

10 de maio de 2015

É dia das mães.

Vejo várias mamães falando sobre a inefável experiência materna, o amor eterno, transcendental.
Não vou falar disso. Deixo para quem transcendeu. Eu não. Nada menos transcendental do que o cotidiano: o cocô na banheira, o xixi sem fralda, o nariz escorrendo, a comida no chão, a tinta na boca, a birra no metrô lotado, a briga na escola, o tombo no caminho, a febre de madrugada, a empolgação no domingo cedo, a empolgação tarde da noite, o puxão na tomada antes de você salvar o arquivo, o desenho na hora do jornal, o grito enquanto você está numa ligação importante de trabalho, a impaciência no meio da história.
Toda a relação é uma construção. Inclusive aquelas onde o amor está presumido.
O amor é um elo que precisa ser nutrido no compromisso, no companheirismo, na espera, na ação, no ritmo, nos dias.
Este é só mais um dia.
De muitos.
Em que uma mamãe ama. E espera fazer algo de bom com isso.
Meu amor não é inexplicável. Ele se explica em cada exercício que me tira do conforto individualista. 
Meu amor não é transcendental. Mas quem sabe possa, assim mesmo, simples e imanente, no esforço das ocupações ordinárias, fazer algo de bom por mim também.


14 de abril de 2015

Mais uma de amor


Vieram entrando pela Casa aqueles dois.
Devem ter percebido de alguma forma não totalmente consciente que eu sou um instrumento da comunicação irrequieta e perturbada de estranhos, que canaliza manifestações inusuais espontâneas e depois psicografa a voz do anônimo. O perfil ideal que toparia aquele tipo de trabalho. 


Aproximaram-se para me encontrar no meio da roda e primeiro foram tímidos. 
Brasil... futebol... Copa... sério que o real vale menos que o dinar de um país no norte do continente africano?...a capital é o Rio de Janeiro? Fortaleza? Floripa? Argentina?... 
Até que ficaram soltinhos e no ponto para me contar a que vieram. Ou melhor, a que veio. O plano diabólico era de um: 

__ São Paulo é perto do Rio? Sabe... tem essa garota e... esses presentes que eu... ela é linda e... você poderia, por favor, entregar pra mim? 

O amor de juventude supera tudo: o árabe dele, o português dela, o google tradutor no meio, a distância, o fato de não se conhecerem, a cultura, o cabelo lindo que ela teria que esconder em um hidjab, a bebida alcoólica na mão dela na foto do perfil, os 20 anos. Ah... os 20 anos...

14 de março de 2015

8 de março de 2015

8 de março

Foi lentamente que eu aprendi a ser mulher.
Os brincos, a cor rosa, as roupas, os modos, os trejeitos, as pernas cruzadas.
As pernas cruzadas, as pernas cruzadas. Mesmo quando estiver de calças. E calças não. Saias. E delicadeza. Comedimento. Método, moda, moral.
Foi lentamente depois a galope.
Em pouco tempo era natural. Digo, a segunda natureza.
A primeira foi ser gente. Depois foi ser uma mulher e o que se espera disso.
Pausado e pontual, no entanto, foi aprender o que é ser gente antes de ser mulher. Aprender que mulher deve ser obediente e depois desaprender.
E aprender o que é ser obediente, o que é ser acolhedora, amorosa, o que é ser histérica, radical, o que é ser desrespeitada.
Foi em câmera pausada ver o desrespeito.
A cena deu um salto quando a mulher virou mãe. “Mamãe”, eventualmente.
“Mamãe” que sabe de tudo, a quem recorre uma pequena mulher em seu aprendizado de ser mulher.
E eu querendo ensiná-la a ser antes, muito antes, apenas gente.
Ser mulher é ser pessoa, mas ter que carregar consigo uma fala gentil que lembre a quem se esquece.
Neste dia internacional das mulheres, meu reconhecimento e fraternidade a todas as pessoas que nasceram mulheres. E também àquelas que escolheram ser depois de nascidas.
É meu desejo que vivamos com dignidade.
Sejamos felizes.
Livres.
E respeitadas.

19 de fevereiro de 2015

Passos


O som dos passos das sandálias da minha avó no bege dos blocos da rua até o portão verde. 
Eu sabia que estávamos chegando naquele lugar pelo som dos passos dela. Era um som seco de pedrinhas no ladrilho que não se demoravam no choque. Um atrito bem breve alimentando a ansiedade do próximo passo pra chegar, depois de muito tempo no ônibus e o enjôo do cheiro de combustível queimado. 

Anos de tardes depois, reparei no som dos passos que primeiro eram distintamente audíveis, contáveis, mas logo se confundiram em um difuso burburinho. As vozes de cima, das cabeças, abafaram o barulho dos pés usando o asfalto. Eram vozes que gritavam palavras de ordem contra o capitalismo, contra a pobreza, contra a opressão, contra a política imperialista, contra a guerra, contra o analfabetismo, contra o racismo, contra o uso de agrotóxicos, contra os transgênicos, contra a TV Globo, contra. 

Quando a tempestade das 17h começou, muitas pessoas correram para debaixo de toldos ou reentrâncias de cimento, buscando preservar minimamente seus investimentos de energia, saúde e material. 

Com a câmera encharcada nas mãos, encolhi em um canto de loja, no segundo degrau, às portas de uma moradia humilde, cuja dona tentava precariamente proteger a si mesma e seus pertences dos passos que avançavam para cima do seu corpo, do seu leito, das suas roupas, do seu cobertor seco, do papelão que virava tapete de estranhos no progresso da multidão. 
Contemplada em cada frase de ordem na hora da passeata, na hora da chuva não existia mais.

11 de fevereiro de 2015

Drops - A Presença

Depois de uma semana com celular é fácil se lembrar das razões para não ter um celular.
Entre elas, o número que é novo pra mim é velho para outra pessoa.
Depois de atender umas dez ligações explicando que não, eu não sou a mulher, nem a amante, nem nada que valha do Santino, excluir SMSs diversos pro Santino e bloquear sete contatos no WhatsApp me chamando com um amistoso "e aí, véio", resolvi tomar outra atitude.
__ Boa tarde santino como vc esta veio
__ Esse telefone não pertence mais ao Santino. O número foi adquirido por outra pessoa. Por favor, confirme o novo contato da pessoa com quem deseja falar.
__ Santino da rc gesso
__ Como? O Santino que você conhece trabalha com gesso?
__ Como vc conseguiu este numero do santino
Isto mesmo ele tem uma firma de gesso
__ Legal. Eu consegui esse número da seguinte maneira: fui a uma loja de telefonia, comprei um aparelho e a operadora sorteou um número. Foi assim. Há uma semana não param de me ligar perguntando do Santino. Ele deve ser uma pessoa muito querida e aplicar um gesso como ninguém, suponho.
__ Tbm descupa eu ter ti encomadado vou ver se consigo com o filho dele o novo numero dele tvm
Pra mim nao tenho o que falar dele ate logo e descupa tbm
__ Se conseguir o número, me avisa! Daí eu passo pras pessoas que me ligam todos os dias perguntando dele.
__ Tbm obrigado fica com deus
__ Eu que agradeço. Deus nos abençoe.
____________________________________________________

Pegar nenê na escola e metrô no final da tarde.
Cheio, claro.
Depois de dois minutos no carrinho, ela foi se soltando perigosamente e pedindo colo.
Peguei.
Um senhor muito gentil me ofereceu seu lugar entre os preferenciais. A moça ao lado não permitiu que ele se levantasse e cedeu para mim seu próprio lugar, a fim de não desalojar o senhor.
Agradeci e me sentei.
A miss no meu colo, como de costume, foi fazendo a social pela meia hora que passamos ali.
Mandava beijos e acenava, olhava de ladinho, pegava uma coisa da mão de uma pessoa e entregava de volta pra pessoa errada e seguíamos em clima de descontração enquanto o senhor rezava discretamente seu terço durante a viagem.
Na hora de ir embora, voltei minha atenção a ele para agradecer mais uma vez e desejar-lhe boa noite.
__ Não, não. Eu é que agradeço. Sabe porquê? Não é todo o dia que temos a chance de assistir a performance de um anjo em pessoa.
A pequena miss parece que o entendeu e lançou um último beijinho sorridente do meu colo direto para o coração do senhorzinho.

10 de fevereiro de 2015

Avaliação


As alas, neste caso, são divididas em "baterias", o nome que se dá para cada setor, digamos assim. Ela pegou a infantil e chegou a hora da avaliação prática durante o atendimento no hospital da universidade. A professora chegou com a prancheta e foi anotando enquanto a aluna desenvolvia os exercícios com a pequena paciente. Durante aproximadamente uma hora, a aluna procurou se lembrar acuradamente de cada ponto da lesão, causa, diagnóstico, prognóstico, tratamento, resultado esperado, obtido, teorias. E foi explicando para a professora tudo o que fazia com clareza, pedagogicamente, profissionalmente. 
A menina percebeu a tensão do momento, mas segurou sua emoção todo o tempo. 
Ao final do atendimento, não agüentou: 

__ Professora, como é, eu fui bem?

9 de fevereiro de 2015

Mãe solo


8 de fevereiro de 2015

Nossas Beatrizes


Eu me demorei alguns segundos observando, tentando compreender. Ela se aproximou um pouco desenfreada. Parou subitamente à porta, do lado de fora, abaixou a cabeça e sussurrou o que pareceu ser uma oração emergencial, sufocada. Arrependeu-se, esterçou e dirigiu para o mesmo lugar de onde estava vindo. Parou de repente, aos berros: “Beatriz, pelo amor de Deus, Beatriz, me ajuda, Beatriz, não faz isso comigo!!!! Eu tô cansada, Beatriz, todo o dia é isso!!!! Pára! Pára! Pára! Você me deixa doida, doida, doida!!! Beatriz!!!!” – disse enquanto tentava parar o avanço da criança que ia pelo vão do cinto de segurança do carrinho, fazendo a pequena cabeça de cabelinhos louros pendurar pelo pescoço, nem bem saída do carrinho, nem bem de volta ao assento. 

Em um golpe de esgarçado esforço físico, alojou a criança e saiu dirigindo o carrinho rua abaixo. 

Eu à porta, do lado de dentro, considerei primeiro rezar com ela, já que estávamos ambas na farmácia com nossas crianças no sábado à tarde e não deveria ser porque gostamos muito de levar as nossas crianças para passear na farmácia no sábado à tarde. 

Depois considerei ir ajudá-la a desenroscar o pescoço da Beatriz do cinto de segurança do carrinho, antes que a mãe afogasse a si mesma e a Beatriz em seu próprio desespero e cansaço. 

Em seguida, considerei que precisava comprar um chocolate. 
Por coincidência, estava lá o desespero encarnado e a Beatriz, na minha frente na fila: “Não, Beatriz, isso não é seu, é do mercado. Quer dizer, era, antes de você abrir, que agora eu vou ter que pagar, Beatriz. Agora come. Não devolve.” 

Daí considerei que precisávamos muito, nós quatro, descansar. 
Olhei pra minha Beatriz para constatar que, muito perspicaz, ela já dormia em seu carrinho.

4 de fevereiro de 2015

Segundo dia


Linda, rosto simétrico, pele lisa, sobrancelha desenhada. Usava um vestido longo verde e um hidjab da mesma cor e do mesmo tom. Comportava-se com graciosidade.

Enquanto eu comia meu bolo da sobremesa ela contava a história de uma marroquina encarcerada. Casada e grávida de dois meses, o marido (ela ainda se refere a ele como marido) a convidou para ir ao Brasil, onde tinha negócios. Ao desembarcarem, foram presos na alfândega. Havia drogas na bagagem. Dela. Só dela.

Ela disse à Polícia Federal que desconhecia a droga, mas o marido alegou categoricamente que era dela.

Ele foi deportado. Ela foi presa aqui.

O bebê nasceu na prisão e ficou com ela todo o tempo. Por meio de advogados especializados nas leis islâmicas e brasileiras, conseguiu alegar inocência e ser libertada.

Acossada pela tradição, não quer voltar ao país de origem. Foi enganada, mas também foi deixada pelo marido e presa por porte de drogas. É uma vergonha. Alguém que passa por isso mancha o nome da família e não deve regressar.

A religião a acolheu. Primeiro na mesquita, onde foi convocado um chá com a elite e a história foi exposta. Criaram uma rede de apoio. Ela recebe abrigo e salário na casa de uma muçulmana que a ajuda a falar português. Tem aulas do idioma e escola pro filho, que está com quase três anos. Nunca mais entrou em contato com ninguém da família nem com o marido.

Marido.

"O Brasil usa e explora a infância. Crianças são usadas para o tráfico. Nos países árabes é a mulher quem está nesse papel. Muitas são enganadas pelo marido que volta impune, pronto a se casar novamente."

Mas, em ambas as culturas, quem explora, quem engana, quem usa?


1 de fevereiro de 2015

Terezinha de palestra


Nome auspicioso. Quando dizem “ah... não sei que... tá com a Terezinha ou precisa ver com a Terezinha” você já espera alguma coisa. Em um dos prédios onde morei quando era pequena tinha uma dona Belinha que... bom... Ficava lá na janela o dia inteiro, com óculos enormes que viam tudo. Era a relações públicas do pedaço. Lembro dela falando pra minha mãe que tinha uma vizinha que a incomodava todas as noites, porque lavava louça até tarde e fazia barulho. Ela dizia estar averiguando a identidade ainda, mas já tinha pistas. 
Minha mãe engoliu seco. 
Eu gostava quando tocavam a campainha dela, porque tinha o som de passarinhos. Mas isso quase nunca acontecia, de alguém estar à porta desejando vê-la. 

Não sei se é o caso da Terezinha. E também não sei se na vida pessoal alcovita, mas na profissional faz isso profissionalmente. Fala o tempo todo não para que a escutem, mas se escutarem também não lhe faz caso, com a arcada de cima avantajada em um sorriso meio horripilante e amarelado do café. O cabelo mais manchado que grisalho em tamanho médio, com uma tiarinha pra não cair mexas ressecadas nos olhos e impedir a melhor visão de tudo. A fisionomia lhe faz juízo: os olhos saltando das órbitas parecem querer engolir o que se põe à frente. A natureza de suas intervenções é muito diversa, mas sempre negativa. Comenta o alheio e aí cabe de tudo: vestimentas, penteados, presenças, ausências, adivinha a ideologia política subjacente nos discursos a partir do “boa tarde, pessoal, gostaria de agradecer o convite…” 

É capaz de falar ininterruptamente por horas, emendando um assunto no outro fluidamente sem que o interlocutor necessariamente participe de maneira ativa do bate-papo, que segue animado até que possa ser interrompido por alguma fatalidade. Nem um “ã-hãm” é necessário. Se alguém, por acaso, cruzar com ela o olhar e deixar pista de que lhe viu, esta será, inescapavelmente, a próxima testemunha de sua vida.

30 de janeiro de 2015

Carly Rose Sonenclar - Runaway Baby

28 de janeiro de 2015

Primeiro dia


Com o atraso do primeiro, escolhi aleatoriamente um taxista-segunda-opção, quem ganhou mais de uma hora até o aeroporto para reelaborar comigo o processo de separação, segundo casamento e como foi que ele perdeu completamente o contato com a filha Júlia, que hoje está com 12 anos. 
Um caso de alienação parental em decorrência de uma separação unilateral. Ele queria cair fora. Ela não.

Quando ele era gerente de um banco, ela se sentia perfeitamente à vontade para, por exemplo, no aniversário, pedir o cartão de crédito dele emprestado para comprar um presente para si mesma. Foi assim que ele pagou em dez suaves parcelas uma bolsa Louis Vuitton de oito mil reais. Mas daí, depois que o Sudameris foi comprado pelo Real que foi comprado pelo Santander, a qualidade da chefia ficou em 5,0 na escala Richter: assédio moral obsceno. Na última reunião o chefe mandou ele tomar no cú. Ele levantou e disse "vai você que cê deve gostar. tô indo embora" e foi. Com os direitos trabalhistas comprou o táxi e o padrão de vida caiu. A mulher não soube compreender.

Depois que se separaram, ela chegou a invadir o prédio da nova namorada. E também bateu no carro dele enquanto ele saía da garagem da casa dos pais. Amassou a lateral do táxi para ele não ir encontrar a namorada e ainda ficar sem meios para trabalhar.

A despeito dos problemas, a nova relação se fortaleceu e ele decidiu se casar novamente. Como último recurso, a ex disse que ele nunca mais veria a filha. E ele nunca mais a viu mesmo. 
Ele disse que chegou a procurar seus direitos, mas percebeu que a justiça favorece a mãe em uma separação litigiosa e, fortalecida por uma ou outra mentira, a ex-esposa tem as prioridades da guarda exclusiva e usa de alguns artifícios para inviabilizar o contato paterno.

Ele conta que tenta ligar pra menina toda a semana, mas que parece que a ex-mulher trocou os números de telefone, já que, além de ela não atender, agora respondem pessoas cuja voz ele desconhece.

É um peso que ele carrega no peito, esse desrespeito à paternidade, essa distância da filha. 
18 de fevereiro de 2013 foi a última vez que ele a viu, uma segunda-feira. A data ele mesmo mencionou.

Agora planeja ter um outro filho com a atual esposa.

19 de janeiro de 2015

Intolerância laica

Encontrou entre as folhas impressas da pesquisa as instruções do jacaré.
Sentou com o menino e primeiro separaram todas as peças amarelas que seriam necessárias. Enquanto isso, ele foi desabafando as experiências dos quatro anos, a escola, a babá, a irmãzinha e a calopsita da prima, que tinha uma crista assim alta que ele fazia com gel no cabelo pra ficar igual.
Na parte dela as peças de Lego eram maiores, porque as crianças eram menores. Antes de começar o evento ela pesquisou muitas formas diferentes, imprimiu e organizou em uma pasta, para consultar o repertório e não decepcionar a infância. Uma coisa de feeling, não que fosse exigência.
O jacaré ia aparecendo na parte do gato da vó que só fazia cocô no cestinho do crochê...

__ Você não tem respeito mesmo.
__ Oi?
__ Você não tem respeito por mim, nem pelo meu filho, nem pela nossa religião.
__ ...
__ Se você não tem fé o problema é seu. Mas não desdenhe assim das famílias de fé.
__ Hum?
__ Vem, filho.
__ Mas mãe... o jacaré...
__ Solta isso. Olha o que você fez, menina. Sua desrespeitosa. Menina insolente. Vamos filho.

Minha grande torre colorida ia aparecendo na parte em que ela me explicou o que concluiu mais tarde, conversando com a supervisora do evento da Lego sobre a situação:
“Não farás para ti imagem de escultura representando o que quer que seja do que existe lá em cima, no céu, ou cá embaixo, na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.” Deuteronômio, 5:8


9 de janeiro de 2015

Pari normal


A primeira coisa que disse para o médico do convênio que me atendeu para o pré-natal foi que queria ter um parto normal. E foi a última coisa também. 
Já na trigésima nona semana, ele vaticinou: “a bebê vai entrar em sofrimento fetal. Eu te opero na terça”. Tivesse eu aceitado, a bebê perderia 3 dias de barriga e um parto perfeitamente normal, sob os olhares de uma mamãe suada e lacrimosa e um papai de mão firme, que cortou o cordão umbilical. Teríamos perdido uma à outra, digo. Aquele momento lindo em que estávamos sujas e éramos, pela primeira vez na vida, duas pessoas distintas. 

Eu chorei. Ela não. Espertinha, veio pro peito. 
O médico do convênio nunca mais teve notícias de nós duas. Não voltei nem pra agradecer pelos meses de consultas meio afobadas e atrasadas. Ingrata. 
Nem voltei pra dizer pra ele que, naquele dia, entrei no consultório rindo da piada ótima que fizemos enquanto descíamos a rua. E saí do consultório chorando, com medo de que minha bebê estivesse sofrendo na barriga. 

Nem voltei pra dizer pra ele que, depois da última conversa, falei com mais 4 médicos e nenhum deles me disse que a diminuição do líquido amniótico era crítica. Pelo contrário: era o esperado, já que eu estava na última semana de gestação. 
Também nem voltei pra dizer que a minha bebê nasceu saudável e que não me anestesiaram pra parir. Foi na raça, caras. E eu não morri. E ainda vou dizer uma coisa aqui pra vocês: sou totalmente a favor do parto normal e fiquei muito feliz de saber que o governo adotará medidas para coibir a cesariana entre pacientes de convênios médicos. Demorou, mas antes tarde do que nunca. 

...Continue lendo no Blog Inverso.


5 de janeiro de 2015

Conscientização


É sempre muito bom nos depararmos com o efeito imediato da súbita clarividência, a lucidez decorrente do delicado processo de conscientização.

3 de janeiro de 2015

Terror induzido


Nunca fui fã. Por essas e por outras fui acusada diversas vezes de ser careta. 
Não vou ficar aqui listando minhas incontáveis escolhas que não poderiam ser chamadas de “conservadoras”. Vou me ater a um dado essencial em minha defesa: aos oito anos de idade fui flagrada lendo Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída. Deram sumiço na época, li inteiro com mais de 18. 

Leitura muito mais nociva e que ninguém se deu conta antes de começar a avançar os sintomas da demência precoce foi Horror em Amityville, aos 12. O livro era escrito em forma de diário pelo padre que acompanhou a decadência espiritual da família assediada por entidades do mais puro e tenebroso mal. Trazia foto do casal, planta da casa, desenhos da caçula de três irmãos que dizia ter um amigo invisível que lhe aparecia em forma de porco. 

...Continue lendo no Blog Inverso